Depois de anos de silenciamento, Vanessa Campos deu novo sentido ao viver com HIV/aids

Depois de anos de silêncio, Vanessa Campos decidiu que era hora de trazer sua história a público e falar sobre o HIV. Em 2016, ela tomou coragem e escreveu o primeiro depoimento em seu perfil pessoal no Facebook. “Para mim falar sobre HIV/aids é sair de uma solidão terrível que eu vivi por muitos anos da minha vida. E mostrar para as outras pessoas que elas não estão sozinhas”, conta. Em 1990, ela era uma adolescente em Manaus, com 17 anos, que já trabalhava e havia decidido iniciar a vida sexual com o primeiro namorado, da mesma idade. Alguns meses depois, teve sintomas como febre alta, dores no corpo e gânglios aumentados, mas a médica disse se tratar de uma virose simples. Vida que segue.

Seis meses após o término do relacionamento, veio o baque: o ex-namorado sofreu um acidente de carro e, durante a internação, faleceu em decorrência de uma infecção. A causa: HIV. Só assim ela foi orientada a fazer o teste e recebeu o diagnóstico positivo, em 1992. Em uma época em que não havia tratamento, ela logo pensou que iria morrer muito rápido, relembra. “Manaus era uma cidade pequena, eu tive que me mudar, porque por onde andava eu era ‘a namorada do cara que morreu de aids’. Eu não me sentia mais um ser humano, me sentia o próprio vírus ambulante”, relata.

No Rio de Janeiro, cidade para onde foi transferida, recomeçou a vida, iniciou um novo relacionamento e teve o primeiro filho. “A mulher que descobre o seu diagnóstico quer muito ser aceita por alguém. O estigma é muito pesado e vem carregado de culpa”, ressalta. Ao contar para o novo parceiro sobre o HIV positivo, na tentativa de recomeçar, ela passou a ter que lidar com uma norma: “ele me aceitava, contanto que eu não falasse do meu HIV para ninguém, nem na família ou no trabalho. Ele me aceitava se eu me silenciasse”. Os pavores, ela aprendeu a esconder em seu coração. Não havia com quem conversar.

Assim se passaram anos: veio a separação, ela voltou para Manaus, casou-se novamente, teve duas filhas. E o silenciamento era sempre sua companhia. Em 1997, começou a fazer uso dos antirretrovirais (ARV), que então passaram a ser distribuídos gratuitamente pelo SUS. Depois da segunda separação — que “foi uma relação extremamente abusiva, porque continuou o ciclo do silêncio” —, ela novamente decidiu se calar para proteger as duas filhas: “Eu tinha duas crianças que dependiam de mim e, se eu falasse de HIV, elas também iam sofrer discriminação”, narra.

Mas aos poucos, ao buscar informação e contatos pela internet, Vanessa foi descobrindo uma rede de pessoas que também viviam com HIV e começou a quebrar o ciclo de solidão. Até que em 2016, depois de conversar com as duas filhas, já adolescentes, ela escreveu o primeiro texto em que vivenciou a experiência libertadora de revelar sua sorologia ao mundo. Com o apoio das filhas e de amigos, criou a página SoroposiDHIVA, em que fala sobre empoderamento feminino, sexualidade, autocuidado e prevenção. “A soroposiDHIVA nasceu da ideia de que eu pudesse falar o que estivesse sentindo e que as pessoas se sentissem representadas naquelas dores”, define Vanessa, atualmente representante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids (RNP+Brasil) no Grupo Temático Ampliado do programa das Nações Unidas para a aids (Unaids) e representante da RNP+Brasil no Amazonas.

Por que a pauta das mulheres vivendo com HIV/aids sempre foi invisibilizada?

Enquanto mulher vivendo com HIV, existe uma linha do tempo que precisa ser contada. Desde o início da pandemia de aids, as mulheres cisgênero sempre foram muito invisibilizadas. Se a gente buscar a história de como as notícias foram sendo repassadas no mundo inteiro, era visto como “câncer gay”, uma epidemia voltada para homossexuais. Não se falava que poderia atingir qualquer pessoa. Existia o tal do “grupo de risco”. E aí nessa história de vincular a aids a um grupo de risco, as mulheres cisgênero não estavam contabilizadas. E eu era uma delas.

Como se deu a sua descoberta da sorologia e como a sua história revela as vulnerabilidades das mulheres em relação ao HIV?

Eu fui infectada com HIV na primeira semana de janeiro de 1990. Eu tive a infecção aguda, aqueles sintomas muito clássicos da infecção. E eu não sabia. Fui tratada como se fosse uma virose. Na época eu era uma adolescente de 17 anos e só tinha tido um parceiro sexual, um rapaz que eu estava começando a namorar. Começamos a ter relações sexuais mais ou menos no final de novembro de 1989 e, quando foi na primeira semana de janeiro, eu tive a tal infecção aguda pelo HIV, mas sem saber que era HIV, até porque ele mesmo não sabia que tinha HIV, porque também era heterossexual. Com essa história de grupo de risco, os homens heterossexuais e que não usavam drogas injetáveis não eram tratados como alguém que podia ser afetado pela aids. As mulheres cisgênero muito menos. Eu ia me preocupar com a aids para quê? O pior é que até hoje, para meninas e mulheres, 40 anos depois dos primeiros casos de aids, a história é a mesma: elas se sentem imunes porque estão casadas ou se relacionam com o mesmo homem a vida inteira. Não é à toa que as mulheres cisgênero, na terceira idade, estão se descobrindo com HIV/aids. Até porque numa sociedade estruturalmente machista, que mulher casada tem autonomia para exigir o uso de preservativo do seu marido? A primeira coisa que eles dizem para ela, se elas tiverem essa coragem de ter esse diálogo, é: Você está me traindo?

Na construção da prevenção combinada — que evoluiu muito, no mundo inteiro, e aqui no Brasil, desde 2017, temos a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) como protocolo de prevenção combinada —, a mulher cisgênero só entra em dois casos: como trabalhadora sexual ou se ela tem um relacionamento com um homem que vive com HIV. Então ela está sempre condicionada a ter acesso a essa profilaxia dependendo do homem com quem ela transa. Não é por ela ou por ser uma mulher que está vulnerabilizada numa sociedade em que o homem nega o preservativo.

Assim como eu, quantas mulheres naquele mesmo período já estavam dando à luz a crianças com HIV? Os maridos já tinham morrido de aids, mas ninguém falava delas. Ao mesmo tempo que eu, aos 17 anos, estava sendo infectada, muitas meninas estavam nascendo com HIV e a mãe delas logo depois morrendo. Quantas crianças órfãs da aids nós temos com essa idade?

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Fonte: Revista Radis, por Luiz Felipe Stevanim