Projeto da Fiocruz Amazônia voltado para saúde ribeirinha realiza o mapeamento colaborativo da comunidade Santa Maria
O Projeto “Participação comunitária no processo de planejamento, organização e oferta dos serviços de saúde em localidades ribeirinhas da Amazônia”, desenvolvido pela Fiocruz Amazônia, por meio do Programa Inova Fiocruz, e em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), promoveu, durante quatro dias, uma oficina participativa na comunidade Santa Maria, situada na margem esquerda do Rio Negro, na área rural ribeirinha do município de Manaus, com a finalidade de iniciar o processo de elaboração coletiva e colaborativa do mapeamento espacial da comunidade, identificando geograficamente potencialidades como pontos turísticos, de lazer, prática esportiva, e também características de uso, a exemplo dos acessos à comunidade, arruamentos, domicílios, escolas, igrejas, áreas de produção e colheita, descarte de resíduos, coleta de água, entre outros. O mapeamento é uma das etapas do projeto que compreende o reconhecimento por parte dos próprios comunitários das características e potencialidades da localidade onde vivem e contribuirá para a escolha das prioridades de saúde da comunidade. As prioridades escolhidas serão ponto de partida para a construção do plano de ação a ser desenvolvido pelos próprios comunitários.
Situada a cinco horas de barco de Manaus, Santa Maria pertence à Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Poranga Conquista, município de Manaus. Possui um total de 47 famílias e uma população estimada em 142 habitantes, a grande maioria (aproximadamente 80%) com idade abaixo dos 60 anos. Localizada às margens do Rio Negro, a comunidade é uma “ilha” cercada de igarapés que desaguam no afluente maior, com baixa densidade demográfica e uma população jovem atuante, sobretudo no uso de espaços coletivos destinados à prática de esportes, a exemplo do futebol, jogado por homens e mulheres. Foram exatamente esses jovens da comunidade os convidados do projeto para participar da oficina do mapeamento colaborativo, desenvolvida com o apoio do Núcleo de Geoplanejamento do Centro de Promoção da Saúde (CEDAPS), organização não-governamental carioca que trabalha com projetos sociais focados na participação popular para o aprimoramento de políticas públicas.
Desenvolvido por meio da plataforma My Maps, do Google, o mapeamento contou com a participação efetiva da comunidade, presente à oficina. Uma das bolsistas do projeto, Ane Nunes, do Laboratório de Situação da Saúde e Gestão do Cuidado de Populações Indígenas e outros grupos Vulneráveis (SAGESPI), explica que essa é uma fase importante do processo de reconhecimento da comunidade pelos seus ocupantes. “Já cumprimos diversas etapas, entre elas a da apresentação do projeto aos comunitários pelas próprias lideranças locais e o desenvolvimento de um levantamento histórico, onde os jovens estão entrevistando as pessoas mais velhas para o resgate da história de ocupação da comunidade. Agora, partimos para o mapeamento desse espaço tanto pela importância de sua geografia específica quanto pelas questões que pretendemos aprofundar no que se refere à forma de uso do território”, explica Amandia Sousa, pesquisadora da Fiocruz Amazônia e uma das coordenadoras do projeto.
Para a pesquisadora, o mapeamento pretende focar questões como o descarte de lixo, consumo de água, áreas de lazer, para que a partir desse marco e do levantamento histórico, a comunidade se aproprie da sua própria realidade, identifique as suas principais demandas e, a partir disso, consiga construir de forma colaborativa, com apoio dos pesquisadores e a partir de uma metodologia específica, um plano para que os moradores de Santa Maria consigam se sentir responsáveis pelas mudanças e entendam seu papel diante dos problemas que vivenciam. O projeto pretende envolver num segundo momento os gestores e profissionais de saúde que atuam no território. “Ainda este ano, pretendemos nos reunir com os gestores e profissionais de saúde que realizam os atendimentos mensais na comunidade e apontar problemas e possíveis soluções para compreender as singularidades e necessidades presentes no território ribeirinho”, explica Amandia.
Para o mapeamento, a parceria com o CEDAPS auxiliou com a tecnologia do My Maps, que permitiu aos comunitários adicionarem os pontos e características do território, após visitas in loco. A oficina teve início no dia 5/06, com a apresentação de um desenho do mapa da comunidade feito pelos próprios jovens comunitários, e se estendeu até o dia 7/06. Conforme explica a geógrafa do CEDAPS, Beatriz Rebello Ruzza de Carvalho, a metodologia utilizada é a do Mapa Falante, que permite uma interação maior entre os moradores da área no uso da ferramenta. “Junto com os jovens da comunidade, georreferenciamos as características do território de modo que estas sejam a base para a criação de um plano de ação que responda a desafios identificados coletivamente”, explica ela. A ideia é fazer do mapeamento uma ferramenta que ajude a comunidade a compreender o que eles veem no dia a dia, a partir de outra perspectiva.
GEOGRAFIA DAS EMOÇÕES
“O Mapa Falante mostra onde eles vivem, o que fazem nesses locais e no momento em que estamos com eles in loco, a ferramenta proporciona o reconhecimento de território e das pessoas que fazem parte dele por meio de áudios gravados nos locais. A ideia é ter pessoas diferentes que vão estar no mesmo local conversando com a gente e, ao final dessa experiência, gravar um áudio de uma daquelas pessoas que estejam conosco nos dizendo quais são os pontos primordiais para ela naquele espaço. De volta à oficina. na dinâmica com os jovens, pedimos que todos fechem os olhos e escutem a voz da pessoa explicando como ela observa aquele local e explicando os sentimentos dela, o que chamamos de Geografia das Emoções, uma área ainda pouco explorada que busca compreender a relação emocional existente com os espaços”, observa a geógrafa.
Nesse processo, o projeto pretende mapear, de forma colaborativa, todos os pontos considerados importantes dentro do espaço da comunidade, num trabalho contínuo. “A intenção é fazer com que o mapa fale tudo o que a comunidade até havia esquecido que existia. O mapa é um recorte do que se observa e o ideal é que ele transpareça as informações do dia a dia da comunidade, daí a importância de coletarmos pontos e explorarmos o quanto pudermos, utilizando os recursos disponibilizados pela plataforma Googles Maps, que é gratuita e permite criar vários mapas”, explana a sanitarista Gabriela Ferreira Nascimento Vicente, do Cedaps, que atuou com facilitadora da oficina.
Gabriela ressalta que o mapa falante é uma ferramenta importante para a elaboração de estratégias para a comunidade à medida em que permite o que chama de construção compartilhada de soluções locais. “Uma das prerrogativas desse processo de construção é o fortalecimento da autonomia da comunidade. O que o território diz precisa ser ouvido no momento que se pensa em estratégias. Todos os processos educativos que facilitamos utilizando essa metodologia tem como finalidade construir soluções que possam ser viabilizadas sem nossa presença. Colaboramos com o início da construção, mas a ferramenta digital é aberta para mapeamento colaborativo. Nossa expectativa é de que o mapa de Santa Maria seja de fato um retrato das características da comunidade, que precisam ser consideradas no momento de formulação de políticas públicas e identificação de questões que permitam encontrar soluções na própria comunidade. Queremos voltar daqui a algum tempo e ver o resultado”, adiantou.
SANTA MARIA PARA O MUNDO
O Projeto Saúde Santa Maria vem fazendo a diferença na rotina dos ribeirinhos que residem na comunidade. Um deles é o enfermeiro Alef Lopes, gestor da Unidade Básica de Saúde (UBS), pertencente ao Distrito de Saúde Rural, da Prefeitura de Manaus. Ele explica que a UBS é o único meio de assistência à saúde da população que vive na comunidade e o projeto da Fiocruz vem tendo um papel importante na identificação do que é prioridade para a população. “Algo que em grande escala, não conseguimos visualizar, tendo em vista que o tipo de assistência prestada não leva em conta as particularidades e singularidades da área rural como a de Santa Maria, que tem um público bem específico e com condições de saúde específicas. O projeto vem nos ajudando a elencar as prioridades e, consequentemente, conseguirmos prestar uma assistência mais qualificada para essa população”, explica.
O mapeamento da comunidade foi uma novidade bem-aceita, segundo o gestor da UBS. “Estamos cientes das nossas limitações, mas a partir do momento que envolvemos a comunidade e pontuamos as questões de interesse coletivo ampliamos a nossa visão. A Fiocruz vem justamente para dar essa visão de fora, um pouco mais abrangente e o mapeamento é uma forma de nos conhecermos melhor e de mostrarmos a nossa comunidade para o Mundo, por meio do uso da tecnologia que existe para auxiliar nosso trabalho na ponta”, afirmou, considerando o mapeamento uma etapa de grande valia para a comunidade.
Para os jovens que participaram, a atividade foi uma experiência proveitosa, sobretudo no uso da ferramenta digital. “A experiência que tive com esse mapeamento foi que podemos saber mais sobre nossa comunidade não só com a história e sim como ela foi se formando no decorrer do tempo em tamanho e como ela é hoje”, explica Vanilson Amorim Onofre, 17, estudante do 3o ano do Ensino Médio e morador de Santa Maria. Ele lembra que a chegada definitiva da internet, há cerca de um ano, foi um divisor de águas para a comunidade. “A importância da internet é que melhorou a comunicação entre familiares distantes e também ajudou em ocorrência de acidentes”, exemplificou.
Kleiane Costa Cavalcante, 18, mora na parte de trás da comunidade. Para ela, participar do mapeamento uma “experiência incrível”, possibilitou o contato com pessoas de fora da comunidade e o compartilhamento de conhecimentos. “Foi maravilhoso conversar com o pessoal e o que mais chamou a atenção foi que as pessoas estavam envolvidas, realmente entusiasmadas com o que estava acontecendo. O aprendizado que ficou é que não se trata somente de um mapeamento, não se trata somente de sair de casa, sem rumo para lugar algum, e sim de sonhar, de ver além, olhar nossa comunidade com outros olhos e poder ver as pessoas queimando neurônios em busca de melhorias para a nossa comunidade e acrescentar em nosso mapa”, resumiu.
HISTÓRICO DO PROJETO
Desde 2017, a Fiocruz Amazônia vem atuando em comunidades rurais pertencentes ao município de Manaus, mas que têm como desafio o acesso somente pela via fluvial, condição que impõe limites de atuação na área de assistência à saúde. A intenção do Laboratório SAGESPI, responsável pelas ações, é buscar a melhor forma de fazer com que essas localidades tenham acesso aos serviços de saúde, a partir da construção coletiva de um plano voltado a melhoria da qualidade dos serviços. Por essa razão, foi proposta a execução de um projeto piloto na comunidade Santa Maria, visando não só identificar necessidades para a melhoria da qualidade dos serviços prestados, como também empoderar a comunidade.
Amandia Sousa conta que atuar em localidades de baixa densidade demográfica exige alternativas para se vencer desafios, como o das distâncias entre os núcleos habitacionais. “Reconhecemos tanto na Amazônia quanto em outras localidades do mundo o desafio que é atuar na assistência onde as pessoas ocupam territórios de forma rarefeita e em pequenos núcleos. Estamos tentando construir com a comunidade Santa Maria alternativas para uma melhor forma de atendimento. Na literatura, a gente vai encontrar em países como Austrália e Canadá, que vem conseguindo apontar inovações para o funcionamento dos serviços de saúde nestes tipos de localidades, uma delas tem sido a aposta na contribuição da comunidade no planejamento e execução dos serviços de saúde. O que torna o protagonismo da comunidade uma das soluções que vem apresentando resultados positivos nestas realidades”, admite a pesquisadora.
PARCEIROS
O projeto “Participação comunitária no processo de planejamento, organização e oferta dos serviços de saúde em localidades ribeirinhas da Amazônia” vem sendo desenvolvido desde o ano passado, sob a coordenação dos pesquisadores da Fiocruz Amazônia, Fernando Herkrath e Amandia Sousa. A iniciativa conta também com a parceria de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de São Paulo (USP), Universidade São Judas Tadeu (USJT-SP) e Instituto Federal de Rondônia (IFRO). O Programa Inova Fiocruz, da Fundação Oswaldo Cruz, aprovou um total de 20 projetos dos 35 submetidos ao Edital Inovação Amazônia para receber financiamento para pesquisas como foco na Amazônia. O resultado foi oficializado em junho de 2022, com o anúncio dos aprovados. O edital prevê um total de R$ 7,1 milhões para o financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, voltados para a região amazônica, coordenados por pesquisadores das unidades da Fiocruz no Amazonas e em Rondônia. O edital foi lançado como ferramenta de incentivo às pesquisas em Ciência, Tecnologia e Inovação, com foco em saúde pública na Amazônia, por meio de parceria com as Fundações de Amparo à Pesquisa nos Estados do Amazonas (Fapeam) e Rondônia (Fapero).
ILMD/Fiocruz Amazônia, por Júlio Pedrosa
Fotos: Júlio Pedrosa