“A Aids perdeu a visibilidade”, destaca pesquisadora da Fiocruz
Este é o segundo ano em que o Dia Mundial de Luta contra a Aids (1º/12) ocorrerá em meio à pandemia de Covid-19. A data, instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma oportunidade para apoiar as pessoas envolvidas na luta contra o HIV e melhorar a compreensão do vírus como um problema de saúde pública global. Um vírus e uma epidemia que, de acordo com a diretora do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), a médica Valdiléa Veloso, estão longe das manchetes. “Infelizmente a Aids perdeu a visibilidade”, lamenta. Em entrevista, Valdiléa comenta os avanços no estudo de uma vacina contra o HIV, relembra os grandes feitos da Fiocruz ao longo das décadas e aborda as similaridades entre a epidemia de Aids e a pandemia da Covid-19.
Ao longo desta quarta-feira (1º/12), o INI/Fiocruz disponibilizou testagem de HIV e hepatite entre as pessoas que passaram pelo Instituto. Também hoje (1º/12), a partir das 18h, a Fiocruz vai iluminar o Castelo de Manguinhos de vermelho, em alusão à data.
AFN: Como está o desenvolvimento da vacina contra o HIV?
Valdiléa Veloso: Um dos projetos mais avançados é o Mosaico. A vacina Mosaico usa mesma plataforma de vetor viral da vacina para a Covid-19, o adenovírus. Do ponto de vista científico isso é interessante, já que na atual pandemia passamos a utilizar uma plataforma já amplamente usada no mundo há anos, em outras doenças. A pesquisadora Beatriz Grinsztejn, chefe do laboratório de Pesquisa Clínica em DST e Aids do INI/Fiocruz, é a investigadora principal do Mosaico, que já completou o número de voluntários previstos. Esse estudo, em todo mundo, foi muito bem aceito. Mas não há previsão de quando teremos essa vacina, que está na fase 3. Outras candidatas a vacina demonstraram não ter eficácia ao chegar a essa fase. Precisamos dos ensaios clínicos, que são o padrão ouro para saber qual possível imunizante tem eficácia e segurança. Vale ressaltar que este é o primeiro estudo de fase 3 no Brasil para uma vacina contra o HIV. E que também foi o INI que desenvolveu o primeiro estudo de vacina de HIV no Brasil.
Infelizmente a Aids perdeu a visibilidade nos últimos anos. Só se fala no tema em 1º de dezembro, no Dia Mundial de Luta contra a Aids. Nem a imprensa aborda mais tanto como deveria. É uma situação muito complicada. O país vive uma onda conservadora que bloqueia o trabalho de prevenção que deveria estar sendo feito nas escolas. E em que grupo há mais novos casos? Entre os jovens. Mas pela escola não se consegue mais acessar esse público. No caso dos adolescentes, as unidades de saúde temem entrar no tema porque os pais podem reclamar e, por questões éticas, é necessária a assinatura deles, mas esse tema não é conversado em casa. Assim criam-se barreiras. Em geral a população acredita que é uma questão resolvida, mas está longe de ser. Claro que houve grande melhora com os antirretrovirais, que reduziram o número de mortes e infecções, mas a Aids continua a infectar e matar.
No Brasil, em 2019 – os dados relativos a 2020 vão ser publicados agora, no boletim anual – houve 41 mil infecções diagnosticadas, de pessoas que não tinha comprometidos os seus sistemas imunológicos, e 30 mil casos de pessoas com a doença, já sintomáticas ou com o sistema imunológico competido. Ou seja, mais de 70 mil pessoas. Por isso precisamos trabalhar mais a prevenção do HIV.
AFN: Que paralelo é possível traçar entre a epidemia de Aids e a pandemia de Covid-19?
Valdiléa Veloso: Vejo semelhanças, como o fato de a etiologia não ser conhecida no momento da descrição dos primeiros casos. Os primeiros casos de Aids foram descritos em junho de 1981, em Los Angeles, depois São Francisco e Nova York. Existem similaridades entre o momento em que apareceu o HIV e o agora, com o novo coronavírus. Na época em que surgiram os primeiros casos de HIV houve forte reivindicação da comunidade gay nos EUA por mais investimentos em pesquisa que resultassem em tratamento, vacina, medicamentos, diagnósticos. Foi um movimento da sociedade civil para pressionar o governo americano e exigir que se falasse abertamente sobre a doença. A comunidade gay, que era bem organizada, pressionou e inclusive chegou a participar das pesquisas também contribuindo para o planejamento dos estudos.
Basicamente, no início, os casos ocorriam entre os gays, uma população historicamente muito estigmatizada. No entanto, a movimentação da sociedade civil e as reivindicações contribuíram bastante para diminuir o estigma. Mas o estigma ainda é o combustível da pandemia no mundo inteiro. A pessoas têm receio de fazer o teste. Ou sabem que são positivas mas não procuram tratamento, não contam para ninguém. No entanto, atualmente, quem é diagnosticado, ainda sem comprometimento significativo, tem perspectiva e qualidade de vida semelhantes à da população em geral. A ciência comprovou, de forma irrefutável, que uma pessoa com HIV, que se trata e consegue controlar a multiplicação do vírus em seu organismo, que é identificado pelo exame de carga viral, não transmite a infecção por via sexual.
O conceito de fast track surgiu no FDA [o órgão governamental dos EUA que faz o controle dos medicamentos, entre outros produtos], a partir da mobilização da sociedade civil, que tinha pressa. Até então demorava cerca de dez anos para um medicamento ser aprovado. Com isso o AZT foi aprovado em tempo recorde, ao se mostrar a sua eficácia. Assim as agências regulatórias foram criando análises aceleradas, que são muito usadas hoje e que vimos agora na Covid-19, com estudos que aprovaram emergencialmente as novas vacinas.
São legados que geram novos avanços. Toda aquela movimentação levou a resultados concretos e à mobilização para o enfrentamento a outras doenças. E se estabeleceu a participação da comunidade nas pesquisas. Não apenas como indivíduos voluntários, mas também na elaboração dos estudos e análise dos resultados. Hoje nos beneficiamos desses avanços. Há similaridades e continuidades.
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