Febre amarela: pesquisa identifica mutações na sequência genética do vírus
O Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realizou os primeiros sequenciamentos completos do genoma de amostras do vírus da febre amarela referentes ao atual surto da doença no Brasil. Foram investigadas duas amostras de macacos oriundos do Espírito Santo, mortos em final de fevereiro de 2017. A análise apontou que os microrganismos pertencem ao subtipo genético conhecido como linhagem Sul Americana 1E, que é predominante no país desde 2008.
No entanto, a partir da análise da sequência completa do genoma do vírus foi possível constatar a presença de variações em sequências genéticas que estão associadas a proteínas envolvidas na replicação viral. Não há registro anterior dessas mutações na literatura científica mundial. Os pesquisadores envolvidos na descoberta reforçam que os impactos para a saúde pública ainda precisam ser investigados e apontam para a necessidade de se avaliar mais amostras, relativas a locais diferentes e incluindo casos em humanos, macacos e mosquitos.
Os resultados das análises foram divulgados na revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Os dados foram comunicados pela Presidência da Fiocruz ao Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde. Adicionalmente, dados ainda não publicados apontam os mesmos resultados para a análise de mosquitos coletados no Espírito Santo e para um macaco que veio a óbito no Estado do Rio de Janeiro.
O estudo partiu de uma constatação que vem ganhando cada vez mais espaço: a atual situação de febre amarela no país conta com lacunas de entendimento sobre sua dinâmica de dispersão. O surto é o mais severo das últimas décadas, e a doença tem se espalhado de forma rápida, com epizootias e casos humanos diagnosticados inclusive em locais considerados livres do agravo há quase 70 anos.
Os pesquisadores do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus e do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC se dedicaram a buscar evidências que possam contribuir para esclarecer uma pergunta importante: existe algo de diferente no vírus da febre amarela que está circulando atualmente? “Nesse momento, o compromisso de cada um de nós, pesquisadores, deve ser de gerar conhecimento na sua área de especialidade e compartilhar essas descobertas, de forma acelerada, para que possamos contribuir para preencher um mosaico de evidências que permita ajudar a explicar o cenário atual”, afirma a pesquisadora Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC, que coordenou o estudo com o pesquisador Ricardo Lourenço, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC. Ambos integram a Sala de Situação para Febre Amarela Silvestre criada pela Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Origem das amostras sequenciadas
Em uma colaboração com a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS), o Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários vem atuando na coleta de amostras de primatas e mosquitos em locais estratégicos para o estudo do risco de transmissão e de re-emergência do ciclo urbano da febre amarela. Foi neste contexto que, em final de fevereiro de 2017, o grupo coletou sangue de dois macacos bugios (da espécie Alouatta clamitans) que adoeceram em uma área de mata no Espírito Santo, confirmou a infecção pelo vírus e obteve o material genético para o sequenciamento do genoma.
“Os bugios são especialmente importantes nas investigações sobre a febre amarela por serem considerados ‘sentinelas’: como são muito vulneráveis ao vírus, estão entre os primeiros a morrer quando afetados pela doença. Além disso, estes animais amplificam eficientemente o vírus em seu organismo, favorecendo a infecção de mosquitos que habitam as matas e a disseminação da transmissão silvestre, na qual os seres humanos são infectados acidentalmente. Por isso, sua morte dispara um alerta para a possível presença do vírus em uma localidade”, descreve Ricardo, que combina as experiências como veterinário e entomologista.
As coletas foram realizadas por Filipe Abreu, estudante de pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC, que atua na equipe liderada por Ricardo. “Como há décadas não se registrava febre amarela na mata atlântica, pensei que não veria suas consequências na prática. Foi um enorme aprendizado ter a oportunidade de visualizar e trabalhar, em campo, com objeto de estudo da minha tese”, o jovem biólogo comenta. [Conheça as atividades desenvolvidas pelo grupo em Casimiro de Abreu, município onde foi registrado o primeiro óbito pela doença no Estado do Rio de Janeiro].
Análise do genoma do vírus
Após a extração do material genético (RNA) das amostras, foi realizado o processo de sequenciamento completo do genoma, atividade que contou com o apoio da Plataforma Tecnológica de Sequenciamento de DNA do IOC. As análises apontam para três principais evidências. Como primeira evidência, foi observada 100% de identidade entre as sequências genéticas dos vírus presentes nos animais – ou seja: os vírus tinham sequências genéticas idênticas.
A segunda evidência foi a constatação da presença de modificações no código genético dos vírus. Essas mutações foram identificadas quando a sequência genética completa obtida foi comparada à sequência genética completa de vírus relacionados a surtos ocorridos desde a década de 1980 no Brasil e na Venezuela, país onde a linhagem Sul Americana 1E também é predominante. Para a comparação, foram usados bancos de dados internacionais dedicados ao depósito de sequências genéticas. “As modificações que observamos são inéditas, não estão descritas em achados anteriores”, Myrna detalha.
A terceira evidência foi obtida na análise das proteínas virais, em um passo seguinte à constatação de mudanças na sequência genética. “De forma muito simplificada, o genoma é um código que tem o papel de orientar a produção de proteínas. Essas proteínas são a base da própria estrutura do vírus, formando seus elementos constitutivos, como as paredes do vírus, por exemplo. Podemos comparar o genoma a um roteiro: o vírus tem um repertório de proteínas que são fabricadas a partir da informação do genoma. Algumas mudanças genéticas não impactam as proteínas do vírus. Por isso, é importante observar se as variações genéticas poderiam modificar o repertório das proteínas fabricadas”, descreve a virologista molecular, que é especialista em flavivírus, grupo dos vírus dengue, Zika e febre amarela.
Tendo em vista que foram verificadas modificações na composição de proteínas importantes para a replicação viral, os pesquisadores consideram que é possível haver uma vantagem seletiva, refletindo-se na capacidade de infecção e disseminação do vírus. Entretanto, novas pesquisas são fundamentais para determinar se essas modificações no genoma são específicas dos microrganismos envolvidos no surto atual. “Nesse momento, estamos buscando amostras de genoma do vírus da febre amarela oriundas de diferentes hospedeiros – incluindo seres humanos, macacos e mosquitos – e de diversificadas origens geográficas – especialmente no Sudeste do Brasil, onde a epidemia tem sido mais intensa – para compreender melhor esse fenômeno”, informa Ricardo.
Sobre um possível impacto para a vacina disponível, os pesquisadores explicam que o imunizante adotado atualmente protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul americano e o africano. Além disso, as alterações detectadas no estudo não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina. Eles ressaltam que as sequências genéticas completas dos vírus analisados no estudo já foram publicadas no GenBank, de modo a estarem disponíveis para comparações que possam ser realizadas por outros cientistas do Brasil e do mundo.
Fonte: IOC/Fiocruz
Foto: Gutemberg Brito (IOC/Fiocruz)
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