Projeto Diagnóstico Situacional das UBSF na Amazônia Legal e Pantanal encerra primeira fase de coleta de dados com boas expectativas para próxima etapa
O Projeto Diagnóstico Situacional das Unidades Básicas de Saúde Fluvial (UBSF) encerrou no início do mês de maio a primeira fase da pesquisa, quando estiveram em campo 24 pesquisadores, divididos na Expedição Marajó, Expedição Belém e Rio Tocantins/Expedição PA-AP, Expedição Médio e Alto Solimões, Expedição Rio Negro/ Expedição Parintins, Expedição Manaus/Expedição Madeira e Expedição Acre. Foram visitadas, no total, 53 UBSF em 51 municípios. A Expedição Médio e Alto Solimões foi coordenada por Marluce Mineiro e teve como integrantes Lia Fuenzalida (pesquisadora de saúde), Kleyphide da Silva (engenheiro naval) e Tales Araújo (assistente de campo). Partiu de Manaus em 17/03, com suas distintas rotas, sendo a segunda equipe com o maior tempo de permanência previsto o campo, finalizando suas atividades no município de Jutaí, após 48 dias de viagem.

A equipe visitou nove municípios: Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Fonte Boa, Uarini e Jutaí. Em cada um deles, a Expedição realizou a avaliação das UBSF, entrevistando gestores, profissionais da Estratégias de Saúde da Família Fluvial (eSFF), agentes comunitários de saúde (ACS) e usuários pertencentes aos povos do campo, da floresta e das águas. Para Marluce Mineiro, diversidade é uma das características da pesquisa, começando pela composição da equipe. “Essa pesquisa teve um formato diferenciado porque agrega uma equipe multiprofissional composta por uma sanitarista brasiliense, um engenheiro naval manauara e um cineasta fortalezense, e esse arranjo se fez necessário considerando que estamos avaliando pela primeira vez uma política implementada e desenvolvida há mais de dez anos no Brasil”, comentou.
Segundo a coordenadora de campo, o cenário amazônico observado pela equipe revelou inúmeras diferenças entre os municípios. “Conhecemos um cenário, lindo, deslumbrante, atravessado por numerosas calhas do nosso imenso Rio Solimões. Em cada município, vimos realidades em comum, como a dificuldade de acesso aos serviços na sede dos municípios, por parte das comunidades rurais e ribeirinhas e o elevado preço do combustível, o que impacta diretamente no planejamento das viagens da UBSF. Por outro lado, chamou mais atenção em toda a expedição, perceber que temos muitas amazônias dentro da Amazônia e precisamos pensar em políticas de saúde que considerem as particularidades de cada município ainda que seja da mesma região, em virtude da quantidade de calhas e da dispersão entre as comunidades”, pontua Mineiro.

SEGURANÇA
Nos períodos de cheia e seca, a depender da localidade, os problemas vão para além das condições climáticas, conforme relata a pesquisadora de saúde da Expedição Médio e Alto Solimões, Lia Fuenzalida. “O isolamento da comunidade nesse período agrava os problemas, especialmente em casos de emergência, adoecimento ou qualquer imprevisto de saúde. A Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF) tem o objetivo de levar assistência às comunidades ribeirinhas, mas esses desafios logísticos dificultam o acesso regular. Além disso, há questões graves de segurança. As comunidades estão localizadas em rotas de narcotráfico, onde atuam piratas de rio e garimpeiros ilegais, frequentemente em confronto entre si. Também há relatos de pesca ilegal. Toda a população vive em constante medo, pois esses grupos circulam armados e impõem o terror, principalmente à noite. Navegar nesse período (cheia) é extremamente arriscado”, afirma Lia. A ausência de segurança pública efetiva se agrava pelo tamanho do município, que possui inúmeras calhas e ramificações de rios, criando áreas desprotegidas onde esses grupos criminosos atuam livremente.

Ao todo, nove embarcações foram avaliadas pela equipe da expedição Médio e Alto Solimões. Segundo o engenheiro naval Kleyphide Silva, no município de Jutaí, por exemplo, a UBSF Clarice Souza apresentou estruturas na quilha, costado e leme bastante degradadas devido à acidez da água e sem monitoramento ou manutenção de sua proteção de barreira (pintura). “A indicação é que seja feita uma análise por ultrassom e, caso seja necessário, a substituição de chapas nessas regiões mencionadas. De um modo geral, a embarcação está tecnicamente razoável, foi pintada, suas estruturas internas estão quase novas, ambientes limpos e zelados, porém se faz também necessária a manutenção da popa após danos estruturais que podem ter se originado após colisões com outros barcos. “Mas digo com um largo sorriso que a tripulação cuida muito bem da embarcação e acredito que está sendo muito bem utilizada na região”, avaliou o engenheiro naval.
Tales Araújo, assistente de campo, observou que “a UBSF de Jutaí promove a atenção básica para uma área do Brasil socioeconomicamente vulnerável, que não tem acesso a medicamentos nem atendimento médico, ou seja, promove a cidadania de todo um povo que foi por muito tempo escanteado pelo Estado. As ações da UBSF estão melhorando a qualidade de vida dos povos da água e fortalecendo o vínculo entre profissionais e moradores de Jutaí”, ponderou o assistente.

EXPECTATIVAS SOBRE A PESQUISA
A pesquisa entrará, a partir deste mês de maio, na segunda fase de atividades do projeto, desenvolvido pelos parceiros Projeto Saúde e Alegria, Fiocruz Amazônia, Universidade Federal do Pará (UFPA) e Ministério da Saúde. O desafio agora será o de realizar a análise dos dados coletados pelas seis expedições, verificando as condições de funcionamento das UBSF nos municípios atendidos pelas unidades, a fim de subsidiar a elaboração de projetos de reativação, ampliação e qualificação da Estratégia de Saúde da Família Fluvial. Saiba quais são as expectativas em relação ao projeto e a aplicabilidade na prática dos seus resultados na região da expedição:
André Vinícius de Araújo – Coordenador Operacional da Pesquisa.
“A expectativa para a segunda etapa da pesquisa é que com o aprendizado, poderemos sugerir melhorias no planejamento e a execução da pesquisa de campo, e como na etapa já executada, os pesquisadores sejam bem recebidos nos municípios para que a coleta de dados possa ocorrer sem preocupações. Minha avaliação sobre a execução do projeto é positiva, pois tivemos uma boa recepção por parte dos municípios, que em alguns casos disponibilizaram transporte. Ainda tivemos em campo colaboradores/as bastante compromissado/as com a pesquisa, que sempre davam feedback do que acontecia em campo, então as ferramentas de comunicação disponíveis são fundamentais para esta execução. Das 52 UBSFs planejadas para a visita, tivemos a acesso total a 50 em 50 municípios. Claro que é necessário adaptar muitos processos em cada etapa, mas considero positivo o saldo da pesquisa”.
Marluce Mineiro – Coordenadora da Experdição Médio e Alto Solimões
“Minhas expectativas em relação ao projeto sempre foram bastante altas, justamente pela sua proposta abrangente. Ele contempla diferentes tipos de questionários que permitem um aprofundamento em várias dimensões das embarcações de saúde — desde aspectos sociais, que envolvem tanto os usuários quanto os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), até questões estruturais e de gestão, voltadas às Secretarias Municipais de Saúde. Também vejo como um diferencial a inclusão da perspectiva da Engenharia Naval, considerando a infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSFs). É um projeto que dialoga com diferentes setores e atores, e por isso tem potencial para gerar mudanças concretas. Um dos principais pontos levantados nas entrevistas foi a questão do financiamento. Embora a política pública exista e preveja a atuação das UBSFs, os custos operacionais — especialmente em áreas ribeirinhas — são extremamente altos. Isso inclui não só os insumos médicos, mas também o combustível (diesel e gasolina), a manutenção das embarcações e outros aspectos logísticos. Esses foram desafios recorrentes apontados pelas equipes entrevistadas. Acredito que os dados coletados poderão contribuir significativamente para que os gestores do Ministério da Saúde e os pesquisadores consigam aprofundar o diagnóstico e visualizar caminhos reais de melhoria. Tenho confiança de que há disposição do Ministério da Saúde para promover mudanças efetivas que atendam às necessidades das populações ribeirinhas. Acredito que mais do que relatos sobre as necessidades de melhorias, conseguimos captar nos municípios visitados um panorama real das principais dos desafios de cada local. Temos um banco de dados gigante que poderá subsidiar/nortear os diálogos das pactuações da Comissão Intergestores Tripartite, revisando metas, indicadores e estratégias para a atenção à saúde ribeirinha. o que me chamou mais atenção em toda a expedição é ter percebido que temos muitas Amazônias dentro da Amazônia e precisamos pensar em políticas de saúde que considerem as particularidades de cada município ainda que seja da mesma região, em virtude da quantidade de calhas e da dispersão entre as comunidades”
Imagem: Secretária de saúde de Jutaí em entrevista na UBSF Clarice Souza
Genize Kaoany Alves Vasconcelos – Coordenadora da Expedição Baixo Amazonas/AM
“Sob a perspectiva do pesquisador que conduziu entrevistas com os usuários dos serviços, ficou evidente que a presença da UBSF representa o coração da assistência à saúde nas regiões do interior do Amazonas. Em alguns municípios, conseguimos realizar entrevistas diretamente nas comunidades, juntamente com usuários, o que nos permitiu observar dois cenários distintos: locais onde a UBSF estava operante e outros onde se encontrava inoperante. Durante a coleta de dados, experimentamos uma mistura de sentimentos. Por um lado, a alegria dos usuários ao relatarem que a UBSF estava ativa e atendendo às suas necessidades; por outro, a tristeza daqueles que não ouviam mais o apito da embarcação atracando no porto improvisado da comunidade, um som que simbolizava ‘cuidado. A ausência da UBSF impõe um custo alto a essas populações: sem o serviço, os usuários precisam se deslocar até a sede dos municípios ou locais dentro do perímetro rural de referência para buscar atendimento, o que exige tempo, recursos financeiros e físicos, os quais muitas vezes são escassos. Em muitos casos, o pouco que possuem é destinado apenas à própria subsistência. Portanto, espera-se que os resultados do diagnóstico fornecem subsídios para o fortalecimento das políticas públicas voltadas à saúde dos povos das águas e floresta e ao aprimoramento das estratégias de atenção primária por meio das UBSFs. assegurando sua sustentabilidade e ampliação do acesso à saúde”.
Foto: Kaoani (cordenadora) e ACS de Barreirinha/AM.

Vinicius Yuri Borges dos Santos – Coordenador da Expedição Belém e Baixo Tocantins e PA/AP.
“Como coordenador eu espero que venham melhorias para os municípios de fato e que o ministério reestruture essa política que, como profissional de saúde do SUS, reconheço que é excelente, mas que assim como muitos serviços encontra-se sucateada em algumas cidades. Passei por 9 cidades entre o baixo Tocantins, Amapá e uma parte da região do Marajó e o que eu diagnostiquei e foi repassado no REDCap em sua maioria é que muitas unidades não estão funcionando devido ao processo burocrático de credenciamento, e entre essas unidades a unanimidade entre os gestores foi que a burocratização perante a marinha para emitir as certificações legais foi o pior empasse. Algumas unidades que estão credenciadas relataram que ficaram cerca de dois anos nesse processo junto à Marinha. Das 9 unidades que fui apenas quatro estavam credenciadas e funcionando, as demais estavam se perdendo atracadas no Porto e aguardando a legalização. Existem unidades que estão desde 2017 paradas e largadas ao tempo, unidades que poderiam estar atendendo a população ribeirinha. Por outro lado, na visão dos municípios que estão credenciados a unanimidade foi quanto ao valor do custeio da embarcação, que segundo eles é insuficiente. Passei por municípios de menos de 30 mil habitantes que recebem 90 mil de custeio do ministério e entram com uma contrapartida de 120 mil, algo totalmente desproporcional quando se analisa os dois orçamentos. Muitos municípios gostariam de ofertar mais serviços, mas a realidade orçamentária não permite essa expansão, mas mesmo assim alguns municípios tentam reforçar esses atendimentos que em tese deveriam ser de atenção básica mas acabam passando para média complexidade devido a carência, nos deparamos com alguns municípios ofertando eletrocardiograma, ultrassonografia e atendimentos que não são de Atenção Básica, e ficamos felizes por saber que existiu esse esforço do município para implementar esse serviço. Então, na prática, eu e a minha equipe acreditamos que os relatórios podem nortear muito bem o ministério para reformar essa política, tanto desburocratizando o processo de credenciamento através de um termo de cooperação junto à Marinha, ou a criação de um grupo de trabalho para credenciar essas embarcações, através do aumento do custeio mensal, criação de um programa de informatização destas unidades fluviais ou através de melhorias no projeto”.
Imagem: Equipe da Expedição na UBSF de Abaetetuba/PA.
Claudivan Balbino Mello – Coordenador da Expedição Manaus/Rio Madeira.

“A expectativa é identificar todas, ou a maior parte, das dificuldades enfrentadas pela administração local na execução da assistência em saúde para a população da zona rural por meio da unidade fluvial. É importante compreender o que impediu a implementação eficaz dessa estratégia, considerando que já existe a UBSF, mas a assistência em saúde oferecida por meio da unidade fluvial ainda não funciona adequadamente. Além disso, pretende-se propor cursos de capacitação voltados à estratégia da UBSF. A maioria dos secretários mencionou apenas a dificuldade de manter a unidade fluvial devido à insuficiência de recursos financeiros. No entanto, há pouca atenção para o impacto sobre os profissionais, que enfrentam desafios como a carga de trabalho exaustiva, o tempo prolongado longe de casa, a falta de acompanhamento psicológico e a ausência de compensação financeira adequada. Esses fatores podem resultar em alta rotatividade ou escassez de profissionais qualificados. Assim, o projeto busca propor melhorias de forma abrangente para garantir que a assistência em saúde à população da zona rural, por meio da Unidade Básica de Saúde Fluvial, seja eficaz, resolutiva e mais frequente. Isso inclui medidas para manter a continuidade do serviço mesmo em períodos de maior dificuldade, como a seca dos rios. Esse fenômeno representa um grande desafio para a navegação fluvial e um impacto ainda maior para as comunidades ribeirinhas, que podem ficar completamente isoladas e sem acesso a cuidados essenciais. Na prática, trata-se de flexibilizar ou eliminar os impedimentos que tornam a execução da política inviável, considerando as necessidades específicas de cada região. Isso inclui a adição de mais componentes de saúde, a ampliação do espaço físico, a oferta de mais opções de serviços e a consolidação da Estratégia Saúde da Família Fluvial como uma das principais iniciativas para levar assistência à população ribeirinha, especialmente nos momentos em que mais precisam, garantindo um atendimento de qualidade, com resolutividade e equidade”.
Imagem: UBSF Isaías Viana Carvalho – Anori/AM.
ILMD/Fiocruz Amazônia, por Júlio Pedrosa e Marluce Mineiro
Fotos: Divulgação / Fiocruz Amazônia