Fiocruz Amazônia e Queen Mary University desenvolvem projeto sobre segurança alimentar em comunidades ribeirinha e de favela no Amazonas e Rio de Janeiro

A Fundação Oswaldo Cruz, por meio do Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, a Queen Mary University e a Fundação Getúlio Vargas estarão atuando juntas, ao longo de um ano, na execução do projeto “Futuro das Populações Amazônicas: Segurança alimentar e saúde em um cenário de mudanças que impactam seus modos de vida e o ambiente em que vivem”. A iniciativa, que reúne pesquisadores das três instituições, está voltada para a compreensão da segurança alimentar no Brasil, focando em territórios que vivenciam vulnerabilidades – área rural ribeirinha de Manaus e o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré, – o que permitirá a construção futura de um projeto robusto que buscará compreender os fatores que impactam a segurança alimentar nesses territórios e prevenir problemas que impactam diretamente a saúde destas populações.

A pesquisadora da Fiocruz Amazônia, Amandia Braga Lima Sousa, do Laboratório Situações de Saúde e Gestão do Cuidado de Populações Indígenas e outros Grupos Vulnerávais (Sagespi), uma das proponentes do projeto, explica que a intenção é reunir subsídios que permitam um levantamento acerca dos possíveis impactos sobre a segurança alimentar nos diferentes territórios. “A idéia é conseguimos ouvir as pessoas para construir um projeto de pesquisa partindo do território para não ser uma iniciativa deslocada e diferente do que eles precisam”, explicou Amandia. No último dia 25/07, como parte das atividades do projeto, uma equipe de pesquisadores da Queen Mary University, Escola Politécnica Joaquim Venâncio e da Rede Maré esteve presente na Comunidade Santa Maria, localizada na área rural ribeirinha de Manaus. Com acesso somente pela via fluvial e situada a três horas e meia de barco, partindo da área urbana, Santa Maria faz parte das localidades que têm sido objeto de pesquisas pelo Sagespi.

“Ao longo desse projeto foram feitas diversas parcerias de pesquisa, com representações de todas as instituições envolvidas e, tanto no Amazonas quanto no Rio de Janeiro, já conseguimos congregar mais pesquisadores de ouras instituições  com a intenção de montar um grande projeto guarda-chuva que tenha as necessidades da população como foco e nos possibilite conseguir um financiamento robusto para a execução da proposta”, afirma a pesquisadora. A visita de campo integrou um cronograma de atividades que incluiu a realização de uma oficina de fotografia para os comunitários. A oficina contou com um total de 15 participantes e resultou numa exposição cujo tema foram os alimentos que fazem parte do dia a dia da comunidade. “O objetivo da iniciativa foi reconhecer as percepções de moradores de áreas rurais ribeirinhas de Manaus sobre o acesso ao alimento e as ameaças à segurança alimentar nestas localidades para promover a partir disso discussão sobre o tema com pesquisadores, profissionais de saúde e outros atores interessados”, explica o pesquisador da Fiocruz Amazônia, Fernando Herkrath, coordenador do Sagespi.

A oficina, ministrada pela fotógrafa profissional Cristiana Ferreira, permitiu aos moradores da comunidade a experiência inusitada de fotografar o alimento que comem, assim como o local onde produzem e coletam alimentos (no caso da alimentação oriunda da natureza) e onde adquirem (alimentos industrializados). A oficina teve três dias de duração e, a partir das 44 fotos feitas pelos participantes, com os próprios celulares, foi possível montar a exposição que funcionou como uma estratégia facilitadora para o reconhecimento das percepções dos moradores e para a discussão em grupo. Dispostas em um varal, as fotos trouxeram registros reveladores através de imagens diversificadas, desde o tradicional peixe frito – que vem perdendo espaço para o frango que chega congelado da área urbana de Manaus à comunidade – ao tucumã, à macaxeira, à farinha de mandioca; frutas como o açaí, jambo, banana, a tradicional carne de animais silvestres, a exemplo do tatu, tracajá e do jacaré; o urucum, utilizado como condimento natural; o prato feito, com feijão, arroz, macarrão e os ultraprocessados como a salsicha e linguiça calabresa. Morador da Santa Maria, Ricardo Cavalcanti, 19 anos, explica que está cada vez mais difícil se manter a tradição da alimentação natural na localidade, devido à dificuldade na obtenção do peixe e das carnes de caça. “Hábitos antigos estão sendo esquecidos pelos mais jovens. Antes a gente comia mais peixe e caça, agora é ovo, salsicha e calabresa”, revelou.

Além de pesquisadores das três instituições que compõem o projeto, a comitiva que visitou a comunidade foi composta também por representantes da Rede Maré, Secretaria Municipal de Saúde (Semsa-Manaus), Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas-Manaus) e o Conselho Consultivo do Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro, tendo em vista que a comunidade está situada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista. Santa Maria possui hoje um total de 47 famílias e uma população estimada em 142 habitantes, a grande maioria (aproximadamente 80%) com idade abaixo dos 60 anos.

A agente comunitária de saúde Maria Tereza Silva Rocha trabalha na comunidade Santa Maria há 28 anos e há dois meses assumiu a gestão da Unidade de Saúde Rural, que funciona no local. Segundo ela, a iniciativa de melhorar a qualidade dos alimentos consumidos pelos moradores, somada à prática de atividades físicas, é uma forma de contribuir efetivamente para a melhoria da saúde dos comunitários. “Temos um grupo de caminhada aqui, um grupo de exercício. Desde que a Fiocruz chegou aqui falando sobre saúde e qualidade de vida, intensificamos essa prática sobretudo com os idosos. Montamos grupos de mulheres, o futebol das crianças e o vôlei, e temos uma sede social que utilizamos para fazer nossas atividades”, reforçou.

ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS

A nutricionista do Distrito Rural de Manaus Karoline Campos, que acompanhou a visita à Santa Maria, explica que é alto o consumo de alimentos industrializados na maioria das comunidades ribeirinhas do município. “Quando cheguei aqui imaginava que havia plantação, alimentação com produtos oriundos da natureza e me deparei com uma situação totalmente diferente: alimentação rica em industrializados, salgadinhos ricos em sódio, alimentos ricos em açúcar, refrigerantes, pouca ingesta de frutas e legumes”, afirma Karoline.

A nutricionista enfatiza que a alimentação baseada em alimentos não-processados seria muito mais barata e impactaria muito menos na saúde da população, reduzindo o índice de doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade, diabetes, hipertensão. “Hoje, são comuns casos de crianças e jovens com essas doenças, daí a importância de iniciativas como essa da Fiocruz e Queen Mary University.  Fernando Herkrath endossa as palavras da nutricionista e revela que o perfil das doenças tem mudado, dentre diversos outros motivos, por conta dessa mudança de comportamento em relação aos hábitos alimentares.

Karoline aponta a dificuldade de acesso a essas comunidades e a necessidade de uma equipe com mais profissionais nutricionistas para a realização de um trabalho de sensibilização nas localidades. “A área de abrangência do Disa Rural é muito grande e o acesso é difícil, vez ou outra tenho que ir em campo para fazer atendimento e pego barco, pego estrada, são geralmente áreas bem distantes e bem difíceis de se chegar”, afirma. O Disa Rural conta com quatro unidades terrestres e duas unidades de saúde fluviais.

SEGURANÇA ALIMENTAR

Três instituições concorreram ao edital Fund Acceleration 2, com recursos da Queen Mary, da Fiocruz e da FGV para a execução do projeto voltado para a compreensão da segurança alimentar no Brasil, focando em dois territórios – área ribeirinha em Manaus (AM) e área de favela no Complexo da Maré (RJ). “Nossa proposta foi aprovada no ano passado e estamos no encerramento dessa etapa que teve como finalidade integrar os pesquisadores para elaborar um projeto de pesquisa, partindo do território“, explica Amandia.

Segundo a pesquisadora, após a visita à comunidade Santa Maria, o grupo irá também ao Complexo da Maré para levantar com a população daquele território as questões que estão impactando a segurança alimentar, considerando que estamos vivendo tempos de mudanças na forma de se alimentar e, também, no impacto do clima na vida dessas populações.

IMIGRAÇÃO NORDESTINA

Para a pesquisadora da Fiocruz Mariana Aleixo, moradora do Complexo da Maré e integrante da Rede da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o território composto por 15 favelas, numa área de quatro quilômetros quadrados, tem uma especificidade peculiar aos territórios de favela da Região Sudeste brasileira, que é o recorte cultural e de ancestralidade nordestina, bastante relacionado à questão da alimentação. “Pelo menos, 25% da população do Complexo da Maré é nordestina, uma população que vem do espaço rural e ocupa o espaço urbano, com essa forte conexão ancestral”, explica, lembrando que a Rede da Maré é uma organização da sociedade civil que atua no Complexo da Maré há mais de 30 anos.

“No Rio de Janeiro, mantemos essas tradições alimentares, de referência. Eu nasci na Maré, mas meus pais são paraibanos, do Sertão do Cariri, o que diz muito acerca da realidade da migração muito específica desses territórios de favela”, comentou. Mariana salienta também a facilidade de acesso para os moradores das favelas aos alimentos ultraprocessados, cujo consumo é pautado pelo “sistema”. “Vemos aqui (comunidade Santa Maria) experiências que podem ser adaptadas para pequenos espaços, como o cultivo de hortas nas lajes das favelas. As lajes são o grande espaço de sociabilidade da favela privada e que podem servir também para a produção de alimentos em pequena escala, possibilitando acesso a uma alimentação saudável. Temos um aprendizado aqui que poderemos replicar nesses espaços de favela e que vão ser conectadas com moradores a partir dessa ancestralidade, sem a menor dúvida”, salientou Mariana. O grupo focal deverá visitar o Complexo da Maré, reunindo lideranças comunitárias e representantes de unidades de saúde existentes no conjunto de favelas.

ILMD/Fiocruz Amazônia, Por Júlio Pedrosa

Fotos: Júlio Pedrosa