Fiocruz Amazônia fortalece discussão sobre hábitos alimentares nas aldeias visando redução de danos a indígenas
A Fiocruz Amazônia, por meio do Laboratório de História e Políticas Públicas de Saúde na Amazônia (Lahpsa), conseguiu estabelecer de forma participativa e pioneira, uma discussão sobre a necessidade de implementação de políticas públicas voltadas à mudança de hábitos alimentares nas comunidades e aldeias indígenas no Amazonas. O trabalho foi desenvolvido em pelo menos 15 dos 19 municípios que integram o Distrito Sanitário Indígena de Manaus (DISEI-Manaus), que abrange atualmente 280 aldeias e aproximadamente 33 mil indígenas de 35 etnias, cadastrados no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde. Coordenado pela tecnologista em Saúde Pública e pesquisadora da Fiocruz Amazônia Katia Maria Lima de Menezes, o projeto “Fortalecimento do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional através da inclusão das práticas e saberes tradicionais em territórios indígenas” é financiado pelo Programa Inova Fiocruz e desenvolveu oficinas de capacitação voltadas a agentes e conselheiros indígenas de saúde de diversas aldeias do Estado.

O projeto entra agora na fase final, após quase dois anos de atividades de campo, com a realização de três seminários de vigilância alimentar e nutricional indígena, nos municípios de Rio Preto da Eva, Novo Airão e Nova Olinda do Norte, onde estão situados pólos-base do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), órgão de controle social que promove a participação dos povos indígenas na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas de saúde em seus territórios, parceiro do projeto. “Os seminários são devolutivas do projeto que visam reunir representantes das aldeias, conselheiros e agentes indígenas de saúde, juntamente com autoridades públicas municipais, visando apresentar experiências exitosas de resgate da alimentação tradicional indígena nos territórios bem como propostas e encaminhamentos para o fortalecimento da vigilância s devolutivas por meio da realização de seminários”, explica Kátia Lima.

Segundo a coordenadora do projeto, a intenção é chamar a atenção para a questão da alimentação e dos riscos que as mudanças de hábitos vêm causando, a exemplo do aumento comprovado de doenças como hipertensão e diabetes em indígenas aldeados. Nos últimos dias 24 e 25/09, a equipe do projeto, formada pelas nutricionistas Maria Emilia Malveira e Adriana Lima, juntamente com a assessora pedagógica Sílvia Pimenta, estiveram no município de Rio Preto da Eva, para a realização do primeiro seminário da série de três que acontecerão até o final deste ano. O evento reuniu representantes das cinco aldeias existentes no Pólo-Base Beija-Flor, no município, reunindo indígenas das etnias Munduruku, Mura, Saterê-Maué e Apurinã, além de contar com a participação do presidente do Condisi, Kleuton Lopes, representantes das secretarias municipais de Saúde, Produção Rural e Educação e Desportos e do DSEI-Manaus.

O foco dos seminários é a discussão sobre os hábitos alimentares presentes hoje, de forma predominante, nas comunidades indígenas de aldeias localizadas na área de abrangência do Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus (DSEI-Manaus) e sobretudo o resgate das tradições culinárias indígenas e a formulação de propostas que possam incentivar a melhoria da qualidade alimentar dessas comunidades. “Foi um longo percurso até aqui, desenvolvendo oficinas de capacitação com indígenas para discutir a questão da alimentação, das mudanças de hábitos que estão ocorrendo com a população indígena em relação aos alimentos industrializados, embutidos, refrigerantes, entre outros, que infelizmente estão entrando nas aldeias”, enfatiza Kátia, avaliando o projeto como uma experiência promissora, que, além dos seminários, produziu uma cartilha de segurança alimentar e nutricional indígena – feita junto com os indígenas e em breve fará o lançamento de um livro de receitas tradicionais, atualmente em fase de editoração. “Os três seminários marcam o encerramento do projeto e consubstanciam os dados relativos a essa caminhada”, pontua a coordenadora.

Kátia Lima destaca o pioneirismo e a ousadia da iniciativa ao lançar uma proposta de discussão presencial sobre a questão da alimentação dentro das aldeias. “Temos, em Manaus, o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, que integra o sistema oficial institucional da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, porém é a primeira vez que temos uma ação concreta em termos de formação e discussão com os próprios indígenas, vencendo os desafios geográficos e as barreiras logísticas da região, a partir da expertise da Fiocruz. Até então não havíamos tido nenhuma atividade com essa característica”, observa. O projeto realizou mais de 15 oficinas no decorrer do trabalho, chamando atenção não só dos agentes e conselheiros indígenas de saúde, como também da própria comunidade, sobretudo das mulheres das aldeias.

A conselheira de saúde indígena Rosana da Silva Rodrigues, que atua na Aldeia Beija-Flor 5, situada no Km 134 da AM-010, assentamento Ibirá, em Rio Preto da Eva, conta que as oficinas trouxeram um “leque de esperança” para a comunidade. “Esse projeto que estamos recebendo aqui e finalizando ampliou os nossos horizontes, nossa visão sobre alimentação. Aprendemos a colocar para os parentes os ensinamentos que recebemos aqui. Hoje as aldeias têm várias etnias, cada uma com um modo de viver, mas a importância da alimentação é um consenso para todas”, afirmou. Segundo ela, as crianças da aldeia atualmente se alimentam com salsicha, macarrão instantâneo, calabresa e enlatados, saindo totalmente do contexto da tradição alimentar indígena, o que exige um repensar em relação às culturas alimentares.
“No interior, temos que ter muito cuidado com a alimentação, sobretudo com o que tiramos da floresta para alimentar nossas famílias. Se matamos para nos alimentar não estamos cometendo crime. Não podemos deixar essa cultura se perder e passarmos a consumir apenas alimentação industrializada”, ressalta Rosana. A coordenadora explica que a intenção do projeto não é fazer qualquer tipo de repressão aos indígenas. “A finalidade é abrir a discussão, por meio da metodologia ativa participativa, trabalhando junto aos diferentes atores na cartografia social dos territórios, trazendo o que eles produzem e refletindo sobre o que consomem”, detalha Kátia Lima.
PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO
Os seminários também proporcionam a apresentação de propostas de intervenção relacionadas à alimentação saudável que possam vir a ser implementadas nas aldeias. Em Rio Preto da Eva, o evento conseguiu reunir autoridades municipais de diferentes áreas que se comprometeram em estimular ações de vigilância alimentar e nutricional. “Trata-se de uma agenda transversal às pastas da Educação, Saúde, Produção Rural, Meio Ambiente e estamos aqui para contribuir nesse processo”, afirmou o secretário municipal de Produção Rural, Eduardo Castelo, se colocando à disposição para apoiar as aldeias com projetos de cultivo (produção de alimentos). Representantes da Secretaria Municipal de Educação apresentaram dados antropométricos do Diagnóstico Nutricional 2025 da Escola Municipal Indígena Beija Flor, que já indicam a presença de casos de sobrepeso, obesidade e obesidade grave entre os alunos.

Indígena da etnia munduruku, o conselheiro Rosenilson Barbosa dos Santos, o Roni, conta que já conseguiu implementar uma experiencia exitosa de agricultura orgânica na aldeia Beija-Flor 4. “Estamos levando para nossas aldeias tudo que aprendemos e resgatando o conhecimento dos nossos ancestrais. Esse aprendizado só vem a nos engrandecer, pois levaremos esses conhecimentos aos nossos aldeados para que também saibam a importância de se alimentar de forma correta”, complementou.
Nesse processo de discussão nas aldeias, o Condisi tem um papel estratégico. “A parceria com a Fiocruz tem contribuído muito dentro das aldeias, queremos fortalecer isso e levar adiante. As orientações técnicas servem muito para nos orientar. A parceria entre a saúde indígena e a Fiocruz é muito importante. Hoje, no Condisi Manaus, trabalhamos com 260 aldeias, fiscalizando as ações de saúde dos territórios, correndo atrás das problemáticas e buscando a melhoria das comunidades no que se refere à questão da alimentação tradicional”, ressalta o presidente do Condisi, Kleuton Lopes, indígena da etnia munduruku. Segundo ele, o pólo Beija-Flor possui representantes de 12 etnias.

DESEMBALEM MENOS, DESCASQUEM MAIS
São funções do Condisi: controle social, fiscalização e debate, formulação de políticas, deliberação sobre gastos e planejamento de ações de saúde e fortalecimento da representatividade das lideranças indígenas. Para a nutricionista Adriana Lima, a parceria do projeto com o Conselho Distrital de Saúde Indígena foi fundamental na aproximação com as aldeias do DSEI Manaus. “Nesse projeto, buscamos resgatar e fazer com que eles (os indígenas) voltem a ingerir alimentos mais saudáveis, como faziam os mais antigos da aldeia. É comprovado o alto índice de hipertensão e diabetes entre os indígenas do DSEI Manaus por conta da alimentação”, afirma Adriana. A proximidade das aldeias com as cidades facilita o acesso aos alimentos industrializados, enquanto a perda de território e a degradação ambiental dificultam o acesso aos alimentos tradicionais.

Assim como Adriana, a nutricionista Maria Emilia Malveira acompanha as ações do projeto, realizando oficinas de capacitação nas aldeias. “Nessa troca de ideias, todos saímos ganhando. Passamos a conhecer um pouco mais da realidade dos indígenas e pedimos que eles tentem mudar os hábitos alimentares, introduzindo alimentos naturais, como a macaxeira, cará, pupunha, peixe, hortaliças. Nossa orientação é desembalem menos e descasquem mais”, observa Adriana. Por sua vez, Maria Emília alerta devido ao grande índice de ingestão de alimentação industrializada, os indígenas esqueceram o alimento natural. “Há cinco anos, quando comecei a realizar esse acompanhamento junto aos indígenas já havia refrigerante, bolacha recheada, linguiça, salsicha, alimentos com muito sódio, gordura hidrogenada, gordura trans e aditivos colocados para realçar o sabor que são altamente cancerígenos, levando à ocorrência de doenças não-indígenas nas aldeias, como diabetes e hipertensão”, ressalta Malveira.
SOBRE O LAHPSA
O Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia – LAHPSA tem como missão ser referência em pesquisa na área da saúde coletiva, atuando no tripé: desenvolvimento da pesquisa; formação de pesquisadores, profissionais e gestores de saúde; divulgação científica em saúde. Seus membros buscam atuar como sujeitos políticos nos espaços de debate das Políticas Públicas de Saúde e de Ciência, Tecnologia e Inovação na Amazônia. O grupo tem como objetivo discutir, refletir, produzir conhecimento interdisciplinar acerca da saúde coletiva inserido no cenário amazônico. Os estudos e ações buscam contribuir com as instituições e a sociedade na construção de referenciais científicos que influenciam direta e indiretamente na qualidade de vida e da saúde das populações da região amazônica.
ILMD/Fiocruz Amazônia, Por Júlio Pedrosa
Fotos: Júlio Pedrosa