Respeito ao conhecimento tradicional fortalece implementação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações dos Campos, Florestas e Águas na Amazônia
CAREIRO (AM) – Mangarataia, canela, açafrão, algodão roxo, cajarana, panquilé, crajiru, ouriço da castanha, jenipapo, imbaúba branca, banha de cobra e da bota (fêmea do boto). Uma profusão de folhas, raízes, óleos essenciais e frutos da fauna e flora amazônicas revela a potência do que foi o encontro de saberes, proporcionado pela quinta e última trilha do Projeto Começo Meio Começo (CMC), desenvolvido pela Fiocruz Amazônia em parceria com o Ministério da Saúde, no município do Careiro Castanho, a 112 quilômetros de Manaus. Entre os dias 23 e 25/07, o evento reuniu enfermeiros, técnicos de enfermagem, médicos, dentistas e agentes comunitários de saúde dos municípios do Careiro e Autazes. A oficina, promovida pelo projeto e voltada para trabalhadores da saúde ribeirinha, destacou um consenso entre os participantes: o respeito ao conhecimento tradicional é essencial para o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Integral das Populações dos Campos, Florestas e Águas na Amazônia.

A política existe desde 2011 e somente agora, na atual gestão do Governo Federal, vem sendo trabalhada junto aos trabalhadores e trabalhadoras da Atenção Primária à Saúde, por meio de cooperação firmada entre a Fiocruz Amazônia e aCoordenação Geral de Saúde da Família e Comunidade da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, com a finalidade de viabilizar a implementação efetiva da política nacional, levando em conta os saberes e a vivência dos trabalhadores nos territórios. “A quinta e última trilha é parte da formação oferecida a um universo de mais de 2.700 trabalhadores da saúde do campo, florestas e águas em oito estados da Amazônia Legal, ao longo de um ano”, enfatiza a enfermeira e facilitadora do projeto, Fabiana Manica Martins, que atuou como tutora na formação oferecida no Careiro.

Segundo ela, a quinta trilha é o momento da formação em que os olhares se voltam para a política de campos, florestas e águas, num processo de educação permanente dos trabalhadores. “Começamos, na primeira trilha, trazendo as vozes dos territórios para compor e produzir reflexões. Na sequência, buscamos levantar os trabalhos situados dentro da Atenção Básica em área ribeirinha, levando em conta as várias situações de cuidado coletivo e construímos um projeto territorial singular com eles, ao invés de um projeto terapêutico singular, tudo isso ao longo das trilhas, culminando com a Política Nacional de Atenção Integral às Populações dos Campos, Florestas e Águas, desconhecida por alguns e necessitando de implementação efetiva em todos os territórios a partir de um desejo coletivo”, explica Manica.

Durante as dinâmicas, os participantes problematizam as ações e as estratégias preconizadas pela política. Para a enfermeira Nayara Luna, coordenadora da Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF), do Careiro, a formação teve um papel importante na medida em que permitiu aos integrantes da equipe de saúde ribeirinha do município a aquisição de conhecimentos sobre como tratar e acolher de forma integral a população. “Já realizávamos um trabalho bonito e a Fiocruz veio nos engrandecer com esse tipo de formação e esperamos que venham mais vezes”, observou. A enfermeira explica que o município do Careiro possui um total de 150 comunidades rurais ribeirinhas e indígenas, concentradas nas calhas dos rios Castanho, Lago do Mamori, Paraná do Mamori e Paraná do Araçá.

“É um município com uma extensão muito grande e desde 2017 estamos conseguindo levar atendimento médico, odontológico, de enfermagem, coleta de preventivo domiciliar, assistência farmacêutica, com uma equipe multidisciplinar composta por especialistas, por meio da UBSF, que realiza ao menos duas viagens anuais para atendimento a todas as comunidades”, afirmou. Para Roberto Maia, enfermeiro da equipe de saúde ribeirinha da comunidade Novo Céu, município de Autazes, o projeto foi uma oportunidade de compartilhar conhecimentos com colegas de comunidades e municípios vizinhos. “Nos sentimos agraciados em poder compartilhar a nossa vivência e, também, poder agregar a experiência de nossos colegas ao nosso conhecimento. Agradecemos à Fiocruz por esse momento de interação com outros trabalhadores da saúde que vivem as mesmas dificuldades e ao mesmo tempo conhecem a riqueza de produtos naturais que auxiliam no atendimento nos territórios”, enfatiza Roberto.

COMPETÊNCIA CULTURAL
A médica Karina Sebastiana Macedo, que atende na comunidade do Purupuru, no Careiro, enxerga a formação com o uma oportunidade de agregar a competência cultural aos conhecimentos das equipes em atuação. “Como é importante para nós da Saúde, principalmente enfermeiros e ACS, que são profissionais da linha de frente, entendermos as nossas necessidades e o conhecimento que a nossa população tem. Nossa Amazônia é muito diversificada e nossos povos originários têm muito a agregar ao nosso conhecimento científico. Acredito que, a partir disso, conseguimos prestar uma melhor assistência e levarmos esse conhecimento para outros municípios e estados do Brasil que não conhecem as riquezas que temos na Amazônia a nossa competência cultural”, afirmou.

O também médico Thiago Franceschini Fliegner, lotado na Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade Mamori 1, uma das mais isoladas do Careiro, comemorou a participação na formação como uma experiência coletiva enriquecedora. “Estamos completando hoje a quinta trilha do curso que visa valorizar o cuidado e os saberes das populações ribeirinha e indígena. Tivemos uma troca de experiências muito rica com colegas de outros municípios, onde foi possível debater propostas alternativas de tratamento voltados para a fitoterapia, com chás, ervas e óleos essenciais, extraídos da natureza e que são mais acessíveis para as comunidades”, afirmou ressaltando o uso expressivo da andiroba na comunidade em razão das propriedades anti-inflamatórias da planta.

VISIBILIDADE
De acordo com a geógrafa Lupuna Corrêa de Souza, pesquisadora do Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia (Lahpsa), da Fiocruz Amazônia, e facilitadora do curso, o Projeto Começo Meio Começo contribui de forma efetiva no processo de implementação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações dos Campos Florestas e Águas (PNSIPCFAs) ao torná-la mais visível, acessível e praticável nos territórios. ” Através da educação permanente em saúde e da escuta qualificada dos profissionais, o projeto promoveu o fortalecimento da Atenção Básica, o reconhecimento dos saberes locais e a valorização das especificidades culturais e territoriais, aspectos centrais da Política. Além disso, estimulou as equipes, promovendo um processo de implementação mais coerente com a realidade amazônica”, explica.

Atuando como facilitadora de aprendizagem nos municípios de Careiro e como facilitadora de apoio no município de Manicoré, ambos no estado do Amazonas, Lupuna vivenciou a experiência da condução das formações presenciais e EaD, das rodas de conversa e da escuta sensível com os profissionais de saúde. Segundo ela, fundamentais para a construção coletiva do conhecimento e para o fortalecimento do cuidado em saúde nos territórios ribeirinhos. “Grande parte dos profissionais de saúde desconhecia a Política Nacional de Saúde Integral das Populações dos Campos, Florestas e Águas, antes da formação. Ao serem apresentados aos seus princípios e diretrizes durante o projeto, muitos demonstraram surpresa e, ao mesmo tempo, identificação com seus conteúdos, pois a política reflete diretamente os desafios que enfrentam no cotidiano. A reação foi, em geral, positiva e marcada por um sentimento de reconhecimento, valorização e pertencimento, despertando neles o desejo de se engajar mais ativamente em sua implementação”, salientou.

Para Lupuna, a realidade amazônica exige mais dos profissionais de saúde e é importante adaptar a legislação levando em conta essas especificidades. “A realidade amazônica apresenta desafios únicos relacionados ao acesso, à distância geográfica, à interculturalidade e à escassez de recursos. A legislação nacional, muitas vezes pensada a partir de realidades urbanas e centralizadas, não contempla essas particularidades. Portanto, adaptar as normativas e diretrizes à luz das vivências amazônicas não só é importante, como urgente. Isso garantiria maior equidade, efetividade nas ações de saúde e valorização dos modos de vida das populações tradicionais”, reconhece.

A potência do Projeto Começo Meio Começo, reforça Lupuna, está no encontro entre saberes. “Poder escutar os profissionais de saúde, ver suas lutas, reconhecer seus territórios de afeto e resistência, foi transformador. A proposta do projeto, centrada no diálogo, na escuta e na valorização das vivências locais, ressoou profundamente com minha trajetória como pesquisadora social. Ao mesmo tempo em que ensinava, aprendi, e isso me fez compreender, mais uma vez, que é no território, no compartilhamento e no cuidado com o outro que a transformação acontece”, finalizou.
SOBRE O PROJETO
O Projeto Começo Meio Começo é fruto da parceria entre o Ministério da Saúde e a Fiocruz Amazônia, que permitiu a execução, ao longo de dois anos, do Projeto de Formação de Trabalhadores e Trabalhadoras que atuam no cuidado em saúde das populações do Campo, Floresta e Águas, beneficiando aproximadamente 2.790 profissionais da Atenção Primária à Saúde de municípios dos oito estados da Amazônia Legal. O projeto, coordenado pelo pesquisador em Saúde Pública, Julio César Schwieckardt. é um passo importante para a execução da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, das Florestas e das Águas, criada em 2011 com o objetivo de melhorar o nível de saúde dessas populações por meio de ações que busquem a qualificação do acesso aos serviços de saúde, a redução de riscos decorrentes dos processos de trabalho e das inovações tecnológicas agrícolas e a melhoria dos indicadores de saúde. Participaram, no total, 69 pessoas, sendo 31 facilitadores, oito articuladores, seis coordenadores e quatro conteudistas, dos Estados do Pará, Amapá, Maranhão, Acre e Amazonas, além de parceiros das secretárias estaduais e municipais e conselhos de secretarias municipais de saúde (Cosems-PA, Cosems-AC e Cosems-AM).

ENTREGA
Selecionado pelo Programa Mais Médicos, do Governo Federal, Thiago Franceschini Fliegner, 29 anos, nasceu na cidade de Sorriso, Mato Grosso. Estudou a vida toda em escola pública e desde cedo alimentou o sonho de cursar Medicina. Ao completar 18 anos, teve a oportunidade de estudar na Bolívia, onde se graduou médico pela Universidade Cristã da Bolívia, à custa de muito esforço. Desde cedo, sua vida foi marcada pela entrega ao que se propunha a fazer, o que lhe garantiu voltar ao Brasil e conseguir ser aprovado no programa federal e escolher o Estado do Amazonas para atuar. “Ao retornar ao Brasil, percebi que me inserir no mercado do trabalho seria extremamente difícil e eu não tinha opção: precisava trabalhar. Foi quando surgiu a oportunidade do Mais Médico como meio de entrar no mercado de trabalho e exercer a minha profissão. Tinha várias opções em todo o Brasil, mas na região Norte as chances seriam maiores de conseguir vaga e acabei escolhendo o município do Careiro”, relata Thiago.

Hoje, Thiago vive na comunidade ribeirinha Mamori 1, a mais distante e isolada das 150 comunidades do município, a aproximadamente 79 quilômetros da sede. Por se tratar de uma ilha, o acesso, na cheia, se dá pelos meios aquáticos. No período de seca, é preciso vencer 14 km de ramal de terra com péssimas condições de trafegabilidade para chegar a estrada que leva ao Careiro. “As condições são péssimas, muito esburacado, muita lama, em determinadas épocas do ano chegamos a demorar quatro horas pra chegar na cidade”, conta Thiago, que chega a passar meses sem sair da localidade em função da dificuldade de acesso. Segundo o médico, a situação influi diretamente na remoção dos pacientes de urgência e emergência. “Nessas situações, o tempo é determinante para salvar a vida do paciente”, observa.

A UBS da comunidade possui 2.400 pacientes inscritos, em sua maior parte idosos, entre ribeirinhos e moradores de áreas indígenas do entorno. A unidade funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. “A entrega é total”, explica Thiago, que se sente recompensado pela acolhida que recebe. “Me sinto muito acolhido pela comunidade”, diz ele, afirmando se ressentir da falta de condições físicas e de pessoal especializado para desenvolver um trabalho com orientação física e nutricional para os pacientes. “A maior parte, vive dos auxílios do Governo e uma vez por mês vai até a cidade e tem preferência pelos alimentos ultraprocessados. Minha intenção é desenvolver na comunidade um programa de atividades físicas, mas para isso precisaria de orientação especializada (fisioterapeuta, educador físico) e uma área apropriada para essas atividades”, explica. Problemas de coluna, lombalgias crônicas, hipertensão, diabetes são alguns dos distúrbios de saúde mais frequentes da comunidade.
Thiago conta que tem sonhos de cursar pós-graduações e especializações, entre as quais fitoterapia, depois de conhecer a realidade do Mamori 1. “Meus pacientes têm as suas próprias formas de se curar. Os idosos são os pilares da comunidade e para mim é uma honra compartilhar desse cuidado que atravessa gerações, como o do uso da andiroba com suas propriedades antiinflamatórias”, afirma. Na Mandala dos Cuidados, o óleo da andiroba foi o produto apresentado por Thiago como símbolo do conhecimento tradicional ribeirinho.
SAÚDE HUMANA E NATUREZA

A Mandala dos Cuidados é um dos pontos altos da 5ª trilha do Projeto Começo Meio Começo. O objetivo da dinâmica é promover uma reflexão sobre a interdependência entre saúde humana, natureza e comunidade, reforçando a potência do cuidado no território. São trazidos pelos cursistas sementes variadas de árvores nativas (castanha, açaí, jatobá, frutas), de plantas medicinais, alimentos, artesanato, folhas, flores e elementos naturais coletados previamente pelo grupo (folhas verdes, secas, flores do campo, pequenos galhos e cascas de árvores e plantas utilizadas para remédios.

Por exemplo, o Panquilé é utilizado como cicatrizante ocular, bem como no tratamento de gastrite e inflamações como furúnculos. A planta conhecida como Barba-de-Velho é útil em casos de diarreia, enquanto o chá do manjericão é recomendado para problemas respiratórios e o da raiz de açaí auxilia no tratamento da anemia, entre outros. “A mandala representa a riqueza de saberes e é preciso respeitar o saber do outro, saber como trabalhar no território sem agredir esse conhecimento natural e ao mesmo tempo, saúde e natureza, tudo está interligado. Precisamos valorizar a biodiversidade amazônica”, avalia a médica Karina Macedo.

Em Manicoré, os cursistas entenderam que é preciso ampliar o olhar, enxergar territórios que são diversos e valorizar a competência cultural, como forma de implementar a PNSIPCFAs. Entenda-se por dialogar com o território conhecer e valorizar os cuidados das rezadeiras, benzedeiras, puxadores, e refletir sobre como promover o cuidado em saúde no território incluindo essas pessoas. “Na política dos campos, florestas e águas, esse aspecto não é preconizado”, observa Fabiana Manica. Na carta de demandas, que finaliza a oficina, foi sugerida a realização de evento de divulgação com a finalidade de dar visibilidade à Política, junto aos trabalhadores e gestores, incluir no projeto CMC os demais profissionais que integram as equipes de saúde (ACS), além das puxadoras, parteiras e rezadeiras e a incorporação das opções terapêuticas fitoterápicas no Sistema Único de Saúde (SUS) local, oferecendo-as aos cidadãos como parte da assistência farmacêutica. Isso implica em diversas etapas, desde a seleção dos fitoterápicos até a sua disponibilização para a população, passando pela capacitação de profissionais de saúde e pela conscientização sobre o uso correto dessas terapias.
ILMD/Fiocruz Amazônia, Por Júlio Pedrosa
Fotos: Júlio Pedrosa