Projeto identifica padrões de violência contra mulher na Amazônia
Desde 2022, o projeto Vigifeminicídio vem mapeando e qualificando as circunstâncias em que ocorrem feminicídios em capitais da Amazônia Ocidental: Porto Velho (RO), Rio Branco (AC), Manaus (AM) e Boa Vista (RR).
A iniciativa, que se distingue pela abordagem interdisciplinar e por ter como referencial as potencialidades da vigilância da informação em saúde, busca reunir dados confiáveis para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes de prevenção e enfrentamento da violência de gênero na região.
O estudo está em desenvolvimento por pesquisadores do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESA) e da Escola Superior de Ciências Sociais (ESO) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), bem como das Universidades Federais do Acre (UFAC) e Rondônia (UNIR), sob a liderança do professor e epidemiologista Dr. Jesem Douglas Yamall Orellana.
A lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro incluindo o “feminicídio” como qualificador do crime de homicídio. O termo é usado para classificar o assassinato de uma mulher quando este é motivado pelo fato dela ser mulher (misoginia, menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero). Muitas vezes, é decorrente de violência doméstica e agravado por fatores como violência sexual.
Em entrevista à Concertação, Orellana explica que o objetivo inicial é entender quem são essas vítimas, em que circunstâncias elas são vitimizadas e quais suas potenciais consequências. Isso porque, segundo ele, “o feminicídio não elimina apenas uma vida. Ele mutila o círculo íntimo social dessa vítima e atinge suas famílias, filhos e mães. São várias vidas destruídas”.
“A invisibilidade do feminicídio como violência de gênero é ainda maior na região amazônica”
Edinilza Ribeiro dos Santos, professora e pesquisadora
A abordagem pioneira no Brasil contribui para a compreensão do fenômeno no âmbito da Amazônia Legal, região em que os casos de feminicídio cresceram cerca de 22% entre 2018 e 2022, diante de 12% no restante do país.
A professora associada da UEA, Edinilza Ribeiro dos Santos, que atuou no Vigifeminicídio entre 2022 e 2024, explica que a invisibilidade do feminicídio como violência de gênero tem raízes profundas e múltiplas. Ela ressalta que “o projeto tem o potencial de romper com essa invisibilidade ao trazer dados concretos sobre a violência e possibilitar o debate sobre a problemática em espaços institucionais e públicos”.
Ao revelar a interligação de múltiplos fatores que culminam em óbitos violentos de mulheres, o projeto auxilia órgãos públicos a combater a subnotificação
Existem diversas situações em que os órgãos públicos têm dificuldade em distinguir as mortes de mulheres como feminicídios. Um exemplo é o de mulheres envolvidas com o tráfico de drogas, cenário em que muitas são assassinadas, por exemplo, ao tentar romper um relacionamento. Porém, pelo contexto de crime organizado em que vivem, suas mortes não recebem o tratamento de feminicídio, o que agrava o cenário de subnotificação.
Stefanie Lopes, Diretora da Fiocruz Amazônia, esclarece que há também uma dificuldade inerente ao registro dos feminicídios nos prontuários e outros documentos do sistema de saúde, pois o feminicídio não é um “diagnóstico” propriamente, e sim uma “narrativa” que requer certa dose de interpretação dos dados. E essa subnotificação tem graves consequências: “sem dados confiáveis, não conseguimos desenvolver políticas públicas eficazes para prevenção e enfrentamento. A sociedade e os profissionais de saúde muitas vezes não reconhecem as mulheres em risco até que seja tarde demais, e isso perpetua um ciclo de violência”, explica.
Para identificar os casos “invisíveis” de violência letal por gênero, o projeto se apoia num tripé temático que integra ciências humanas (geografia, demografia, antropologia e direito), saúde e engenharia da computação (que incorpora dados estatísticos com uso de inteligência artificial, por exemplo).
Depois de estabelecer a localização geográfica precisa de cada ocorrência, a pesquisa agrega cerca de 90 variáveis que permitem a reconstrução da história social, jurídica e de saúde das vítimas. Como resultado, dentre as mortes originalmente não associadas a gênero, as novas informações eventualmente levam à reclassificação do óbito para “feminicídio presumível”, bem como iluminam as variáveis que estão por trás dessas mortes
Com essa metodologia inovadora, somente em Manaus, o Vigifeminicídio identificou aproximadamente 220 feminicídios entre 2016 e 2022, enquanto as estatísticas oficiais de condenações não chegaram a registrar sequer 100 casos no estado do Amazonas, em toda a sua existência.
Diferentes Amazônias e um padrão de violência: um tema invisibilizado que não pode mais ser ignorado
A incidência de feminicídios na Amazônia é tão heterogênea quanto os seus cenários sócio-econômico-culturais e territoriais. Porém, os resultados da pesquisa revelam que, de maneira geral, os índices são maiores nas grandes cidades, onde o crime organizado está mais presente. As vítimas também são majoritariamente pobres, periféricas, pretas ou pardas. De acordo com o Dr. Jesem, “em termos de mortalidade, a violência de gênero tem hoje um impacto parecido ou até maior do que as mortes maternas, mas não existe um instrumento dentro da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) para investigar essas mortes”.
O epidemiologista não vê a ocultação do feminicídio como fenômeno exclusivo da Região Norte, mas acredita que a menor presença do Estado no território amazônico dificulta ainda mais o endereçamento de políticas públicas. Para ele, a cultura machista por trás dessa ocultação é algo que o Brasil precisa superar para entender que muitos casos de feminicídio ocorrem associados a atividades ilícitas.
Ele explica que essas mulheres são revitimizadas pelo Estado quando as autoridades investigam suas mortes como homicídios simples. Nesses casos, “a sociedade perde a chance de entender a extensão do problema e de criar políticas públicas para combatê-lo. A subnotificação perpetua o ciclo de violência”.
Dados revelam que o atual sistema de proteção é insuficiente e ineficiente
Outro ponto de atenção é que a atual rede de apoio à mulher é ineficiente, quando não omissa. Segundo Orellana, a maior parte das vítimas de feminicídios identificados tinham uma medida protetiva contra seus agressores: “quando uma mulher pede proteção, o que o Estado faz é dar a ela um papel, a medida protetiva. Mas a mulher morre no dia seguinte, na semana seguinte, com medida protetiva e tudo”.
O Vigifeminicídio pode oferecer as bases para políticas públicas transversais e integradas
O pesquisador acredita ser preciso implementar políticas que, a começar pela educação, estejam integradas com as das demais áreas, como saúde e justiça. Para ele, “o feminicídio é como um câncer em estágio terminal. A esperança de cura está em lidar com a doença nos estágios iniciais da violência de gênero: a discriminação, a misoginia, e a violência não letal, porque a letalidade é o resultado dessas violências minimizadas”.
Ao identificar padrões em regiões específicas, o projeto permitirá o desenvolvimento de uma agenda de ações integradas para o combate precoce do feminicídio. Entre elas, a abordagem do problema nas redes de ensino, a criação de sistemas de apoio e acolhimento, a capacitação de profissionais de órgãos da saúde, educação, assistência social e segurança pública e o reforço na aplicação da legislação. Isso pode resultar, por exemplo, na criação de mais Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e no aperfeiçoamento de ações já existentes, como Disque Denúncia Mulher e medidas protetivas.
Esse conjunto de políticas integradas e preventivas deve ser abordado de maneira transversal e estar nos planos de governo. Mais que isso, são emergenciais nos locais em que os índices de violência contra a mulher são mais elevados.
No momento, o projeto Vigifeminicídio está em busca de financiamentos que permitam seu prosseguimento e, eventualmente, a expansão da área de monitoramento.
Uma Concertação Pela Amazônia, Especial para ILMD/Fiocruz Amazônia
Fotos: Michell Melo e Ingrid Anne / Arquivo Fiocruz Amazônia