Entenda o papel de cada inseto na transmissão da febre amarela
Dados do Ministério da Saúde mostram que o país contabiliza, de julho de 2017 a fevereiro de 2018, 164 mortes por febre amarela, com 545 casos confirmados e 422 em investigação. Até o momento, todas as notificações estão associadas ao ciclo silvestre da doença, afetando pessoas que contraíram o vírus em áreas de mata ou em suas proximidades. Segundo a pasta, os casos de infecção em área urbana não ocorrem no Brasil desde 1942. Uma das diferenças centrais entre as duas formas de aquisição da infecção está nos mosquitos que transmitem o vírus da febre amarela em cada ambiente, como explicam pesquisadoras do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Enquanto nas florestas insetos dos gêneros Haemagogus e Sabethes disseminam o agravo, nas cidades, o Aedes aegypti, vetor da dengue, zika e chikungunya, tem potencial de transmissão. Em testes de laboratório, foi comprovada a capacidade de mosquitos Aedes do Rio de Janeiro, Manaus e Goiânia na transmissão de linhagens do vírus que circulam no Brasil e na África. Os especialistas ressaltam a importância de medidas preventivas para evitar a reurbanização da doença.
“Os mosquitos Haemagogus e Sabethes vivem na copa das árvores. Por isso, o alvo preferencial das suas picadas são os macacos, que compartilham o mesmo habitat”, relata Dinair Couto, pesquisadora do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários. Assim, no ciclo silvestre da febre amarela, a circulação do vírus é mantida pela interação entre os vetores e os primatas, que são os principais hospedeiros e amplificadores do vírus: é a partir da picada em primatas infectados que mais mosquitos podem contrair o vírus.
Os símios da América do Sul são muito sensíveis ao vírus da febre amarela. Eles adoecem de forma semelhante aos seres humanos e frequentemente morrem. O óbito de macacos em determinada área é um dos principais indícios de circulação do vírus na floresta. “Nesse ciclo, a infecção humana ocorre de forma acidental. Ao entrar ou se aproximar de uma área de mata onde há epizootia [mortalidade de macacos], as pessoas não vacinadas podem contrair a infecção através de picadas de mosquitos Haemagogus ou Sabethes infectados, que eventualmente descem da copa das árvores para perto do solo. Sem imunidade à doença, elas serão infectadas”, completa Maria Goreti Freitas, pesquisadora do mesmo Laboratório.
Diferentes espécies de mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes podem transmitir a febre amarela em ambientes silvestres. No Brasil, as mais frequentes são Haemagogus janthinomys e Haemagogus leucocelaenus, insetos considerados vetores primários da forma silvestre da doença, uma vez que suas características genéticas, biológicas e comportamentais são favoráveis para a transmissão, tornando-os capazes de desencadear e manter a circulação do vírus. Entre as espécies do gênero Sabethes, as mais comuns são Sabethes chloropterus e Sabethes albiprivus, mosquitos considerados vetores secundários do vírus, pois não são capazes de sustentar a circulação viral isoladamente, mas podem contribuir para a sua manutenção. Os dois gêneros de insetos podem ser encontrados em florestas de Norte a Sul do país.
HÁBITOS E APARÊNCIA
Visualmente, Haemagogus e Sabethes são mosquitos bem diferentes. No entanto, seus hábitos apresentam semelhanças. No primeiro grupo, os Hg. leucocelaenus apresentam o tórax coberto de escamas escuras com uma faixa prateada longitudinal na parte superior, enquanto os Hg. janthinomys possuem o tórax coberto de escamas de tonalidade escura, que varia de verde-escuro a azul. “A olho nu, os Haemagogus se parecem com os Aedes, sendo que os Hg. leucocelaenus se assemelham especialmente aos Aedes albopictus por possuírem a mesma listra longitudinal no tórax. A principal diferença é que eles não apresentam listras brancas nas pernas”, destaca Dinair. Por outro lado, os Sabethes chamam atenção pelo colorido metalizado, com tons de violeta, roxo, azul e verde.
Os Haemagogus e Sabethes são estritamente silvestres, sendo que os Sabethes são ainda mais seletivos na sua dispersão. Os vetores se concentram nos locais de vegetação preservada, e os Haemagogus podem ser encontrados ainda na periferia das florestas, nas chamadas franjas da mata, onde os Sabethes geralmente não se aventuram. Hg. leucocelaenus pode voar alguns quilômetros através de desacampados para atingir porções de mata isoladas pela ação do homem. Para se reproduzir, esses insetos colocam seus ovos nos ocos das árvores e em bambus, no acúmulo de água formado nos internódios (as conexões entre trechos do caule). Assim como os Aedes, os Haemagogus não depositam seus ovos diretamente na superfície aquática, mas sim na parede interna do criadouro próximo à lâmina d’água. Quando os ovos são submersos, as larvas eclodem e passam a se desenvolver, se alimentado da matéria orgânica presente na água, até se tornarem pupas. Cerca de sete a dez dias após a eclosão dos ovos, os Haemagogus chegam à fase de mosquitos adultos. Já os Sabethes lançam seus ovos diretamente sobre a superfície da água e chegam à fase adulta quase um mês depois.
Insetos Haemagogus e Sabethes possuem um tempo de vida considerado longo para mosquitos, o que pode favorecer a propagação dos vírus. Observações em laboratório indicam que o tempo de sobrevivência de ambos ultrapassa meses após os insetos atingirem a idade adulta. “Esse fator é importante porque, uma vez infectado, o mosquito permanece portador e capaz de transmitir o vírus da febre amarela durante toda a vida”, diz Dinair.
COMPARAÇÕES COM O AEDES
Insetos Haemagogus e A. aegypti compartilham uma vantagem reprodutiva: seus ovos podem permanecer viáveis no ambiente por períodos de seca, até que a chuva abasteça novamente os criadouros com água, contribuindo para o nascimento das larvas. A resistência à dessecação é menor para os Haemagogus – cerca de quatro meses – do que para os A. aegypti – pode chegar a um ano. Ainda assim, segundo as pesquisadoras, o período é longo o suficiente para favorecer a continuidade das espécies em locais com variação na frequência de chuvas. Em contrapartida, os ovos de Sabethes precisam entrar em contato com a água logo após a postura ou perdem a viabilidade.
Ainda no aspecto reprodutivo, os Hg. leucocelaenus possuem uma particularidade: apenas partes dos seus ovos eclode após a primeira submersão em água, enquanto o restante permanece latente, pronto para eclodir em submersões subsequentes. Esse mecanismo faz com que um único lote de ovos dê origem a diversos grupos de mosquitos no decorrer do tempo, favorecendo a sobrevivência da espécie no ambiente por um longo período. Ao mesmo tempo, contribui para a manutenção da circulação do vírus da febre amarela, uma vez que as fêmeas infectadas transmitem o vírus para a prole, em um processo chamado de transmissão transovariana.
A capacidade de percorrer longas distâncias também é um diferencial dos Hg. leucocelaenus. Esses insetos podem alcançar um raio de dispersão de até 6 km, distanciando-se bastante dos seus criadouros. Para comparação, os A. aegypti costumam passar toda a vida adulta perto dos locais onde nasceram. Pesquisas apontam que em ambientes com alta densidade, com casas muito próximas, esses mosquitos voam usualmente num raio de 40 a 50 metros. Já em regiões sem barreiras, como montanhas, praias ou grandes avenidas, eles atingem até 800 metros.
Haemagogus e Sabethes são mosquitos diurnos, assim como os A. aegypti. No entanto, enquanto a espécie urbana prefere picar no começo da manhã e no final da tarde, os vetores silvestres apresentam maior atividade do meio-dia até o pôr do sol, com alguns estudos indicando dois picos: das 12h às 14h e das 16h às 17h. “É interessante observar que esses horários coincidem, muitas vezes, com a atividade humana na mata, tanto para trabalho, quanto para lazer”, comenta Goreti.
SAZONALIDADE
A presença do vetor não é o único fator necessário para a ocorrência de casos de febre amarela. Para que a doença seja disseminada, é preciso haver também vírus em circulação e indivíduos suscetíveis, que possam ser infectados. Considerando esse tripé, os registros de febre amarela em áreas silvestres costumam ter um caráter sazonal, com ocorrência de surtos maiores em intervalos de cinco a dez anos. Geralmente, os casos acontecem entre dezembro e maio, meses chuvosos em grande parte do Brasil, o que favorece a proliferação dos vetores. Além disso, embora haja registros da doença anualmente, epizootias de maior escala são observadas em intervalos de cinco a dez anos. Isso ocorre porque, após um surto, grande parte dos primatas infectados morre e aqueles que sobrevivem adquirem imunidade para o resto da vida. Com isso, a circulação da doença se torna limitada pela ausência de indivíduos suscetíveis e só volta a crescer conforme o número de macacos jovens, que não tiveram contato com o agravo, aumenta.
Importância da prevenção e a possibilidade de urbanização da doença
“Quando ocorre uma grande epizootia, o risco de casos humanos acontecerem aumenta, pois a circulação do vírus se torna mais intensa. Porém, é importante destacar que, diferentemente dos animais, as pessoas possuem um meio eficaz de se prevenir: a vacina”, enfatiza Dinair. Considerando a área de circulação do vírus, a vacinação de rotina é recomendada em 21 estados brasileiros. A lista de municípios com recomendação de vacina pode ser conferida no site do Ministério da Saúde. Pessoas que vão viajar para estas localidades também devem se vacinar com, pelo menos, dez dias de antecedência.
Além de seguir as recomendações para imunização, é importante intensificar o combate ao A. aegypti nas cidades, para prevenir um possível retorno da forma urbana da febre amarela. Um estudo liderado pelo IOC em parceria com o Instituto Pasteur, na França, demonstrou, em testes de laboratório, que mosquitos fluminenses das espécies Aedes aegypti, Aedes albopictus, Haemagogus leucocelaenus e Sabethes albipirvus são altamente suscetíveis à transmissão das linhagens virais da febre amarela que circulam no Brasil e na África. A competência vetorial dos mosquitos Aedes também foi verificada em Manaus e, em menor grau, em Goiânia. Confira todos os detalhes do estudo.
“Teoricamente, a transmissão do agravo no ambiente urbano pode vir a ocorrer se uma pessoa doente for picada por um A. aegypti. Portanto, combater o mosquito é fundamental para reduzir o risco da reintrodução, assim como para enfrentar a dengue, a zika e a chikungunya”, diz a pesquisadora Goreti Freitas, lembrando que eliminar os criadouros é uma das principais formas de atacar o vetor. “Diferentemente das espécies silvestres, que colocam seus ovos nos ocos das árvores, o A. aegypti prefere os criadouros artificiais, comuns no ambiente urbano. Por isso, é preciso vedar as caixas d’águas, colocar tela nos ralos e guardar adequadamente os objetos que podem acumular água”, orienta ela.
IOC/Fiocruz, por Maíra Menezes
Fonte: Portal Fiocruz