Estudo revela que coloração dos rios está relacionada com a incidência de malária na Amazônia brasileira

A Fiocruz Amazônia, em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento, realizou estudo com abordagem inédita na avaliação da relação entre coloração de rios com a incidência da malária. Segundo a pesquisa, liderada pela pesquisadora Fernanda Fonseca, vice-chefe do Laboratório de Modelagem em Estatística, Geoprocessamento e Epidemiologia (LEGEPI), observou-se uma relação entre os dois fatores, razão pela qual, em situações extremas, as localidades próximas aos rios de coloração preta apresentam maior incidência de malária, quando comparados aos chamados rios de águas brancas, que possuem cores turvas e barrentas, como é o caso do Solimões, Amazonas, Madeira e Juruá. Os resultados do trabalho, publicado em artigo científico no Malaria Journal (https://doi.org/10.1186/s12936-023-04789-8), apontam que as águas do rios de cor escura, a exemplo do Rio Negro, por carregarem menos sedimentos e serem mais ácidas, podem favorecer a proliferação do mosquito Anopheles darlingi, transmissor da doença.

O trabalho é de autoria dos pesquisadores em Saúde Pública da Fiocruz Amazônia Fernanda Fonseca, Jesem Orellana e Antonio Balieiro, Naziano Filizola (INPA); Jean-Michel Martinez (Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento) e James Dean Santos (UFAM). Os resultados, segundo os autores, ajudam a identificar os locais com maior risco de transmissão de malária, o que pode contribuir para um planejamento mais preciso de ações voltadas ao controle da doença na região. De acordo com Fernanda Fonseca, a pesquisa foi realizada em uma região com características hidrográficas heterogêneas o suficiente para permitir uma análise que contrastasse as diferentes cores dos rios e abrangendo o Estado do Amazonas, em quase sua totalidade. O trabalho foi tema recente de reportagem da Revista Forbes.

As análises incorporam dados de 50 dos 62 municípios do Estado do Amazonas e foram efetuadas a partir de imagens de satélite do aplicativo Google Earth, de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH), da base de dados do Observatório do Ambiente, Pesquisa em Hidrologia e Geodinâmica da bacia Amazônica e do Sistema de Vigilância Epidemiológica de Malária (SIVEP-Malária), do Ministério da Saúde.

“No Brasil, a malária está concentrada na região amazônica e os rios desempenham um papel importante no ciclo de vida da doença, uma vez que o vetor se reproduz em ambientes aquáticos”, aponta o resumo da pesquisa. As águas dos rios da Amazônia possuem diferentes características químicas, devido principalmente à geologia da região, ao tipo de vegetação, à presença de organismos em decomposição e ao clima. A pesquisa analisou os dados de incidência de malária, entre os anos 2003 a 2019, de 50 municípios do Estado do Amazonas localizados às margens de rios de água preta, branca e mista (preta e branca), com uma probabilidade de 99%; “Nesse contexto, o estudo propôs realizar uma abordagem baseada em hipóteses que correlacionaram as cores das águas e a incidência da doença, a fim de determinar se as características do tipo de cor da água influenciam na distribuição da doença”, explica Fernanda.

A pesquisadora ressalta que, apesar dos avanços dos últimos anos na eliminação da doença, em 2021 países como Venezuela, Brasil e Colômbia foram responsáveis por quase 80% dos casos na região das Américas. “A situação epidemiológica continua preocupante e desafios como ter dados confiáveis sobre a incidência e distribuição da doença, bem como estratégias adaptadas localmente para melhorar o diagnóstico precoce ou o acesso oportuno ao tratamento, continuam sendo desafios importantes, especialmente em grupos e regiões vulneráveis”, afirma a pesquisadora, citando como exemplos os povos indígenas que vivem em áreas remotas e degradadas, geralmente de difícil acesso ou insuficientemente alcançadas pelos serviços de saúde, como o que se observa em áreas de exploração madeireira ilegal e extração mineral na Amazônia.

O estudo revela que, comparando os valores mais baixos do indicador de incidência de malária (IPA) entre as três cores de água avaliadas, os níveis médios dos rios de águas pretas foram substancialmente superiores aos outros dois, uma vez que a probabilidade de incidência da malária é maior nos rios de águas pretas, em comparação aos rios de águas brancas e de águas mistas, ficou próximo de 99%, em ambas as comparações

AMAZONAS

Fernanda observa que, como o Amazonas tem sido historicamente um dos estados com maior incidência da doença no Brasil, a partir de 2002, o Programa Nacional de Controle da Malária, do Ministério da Saúde, incentivou fortemente o Estado no enfrentamento da doença. Foram desenvolvidas ações de fortalecimento da gestão local, com apoio técnico, maior acesso a mosquiteiros inseticidas de longa duração, testes de diagnóstico convencionais e rápidos, melhorias nas redes de laboratórios de diagnóstico, educação sanitária e formação de trabalhadores em saúde.

O estudo mostrou que havia uma tendencia favorável de diminuição da incidência de malária no Amazonas, entre 2003 e 2019. No entanto, o epidemiologista Jesem Orellana, chefe do LEGEPI, destaca que mais recentemente o cenário se tornou desfavorável, já que em 2021, o Amazonas estava entre os cinco estados da região amazônica que não atingiram a meta máxima para casos autóctones, com 17,4% (60.380) casos a mais que o esperado (51.416). Outra informação que também mostra o agravamento da situação epidemiológica da malária no Amazonas é a dos municípios amazônicos considerados de alto risco, já que dos 29 municípios classificados como de alto risco pelo Ministério da Saúde, 14 ou cerca de metade estavam no Amazonas em 2021. (ver: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/m/malaria/situacao-epidemiologica-da-malaria/boletins-epidemiologicos -de-malaria/boletim -epidemiologico-vol-53-no17-2022-panorama-epidemiologico-da-malaria-em-2021-buscando-o-caminho-para-a-eliminacao-da-malaria-no-brasil/view).

Jesem Orellana ainda destaca o pioneirismo do estudo, já que explora não apenas um tema pouco compreendido, como também combina expertises de cientistas do campo da hidrologia, geoprocessamento e sensoriamento remoto, estatística e matemática aplicada à saúde e epidemiologia. “Trabalho interdisciplinar crucial à consolidação de redes de cooperação em pesquisa e para o entendimento mais ampliado de problemas sanitários desafiadores como é o caso da eliminação da malária”, ponderou.

O pesquisador Antonio Balieiro, que participou da construção do modelo estatístico desenvolvido especialmente para a análise dos dados coletados, explica que foram utilizados os métodos da inferência bayesiana, que consiste na avaliação de hipóteses pela máxima verossimilhança; modelos dinâmicos e mistura de distribuições de probabilidades. “Na verdade, o responsável pela construção de um modelo específico para trabalhar com os dados que tínhamos em mãos sobre malária foi o professor James Dean, da UFAM, um dos colaboradores do artigo. Desenvolvemos um primeiro modelo mas percebemos que precisaríamos ter uma estatística mais refinada para  analisar esses dados e a expertise do professor James foi fundamental”, explicou Balieiro.

A expectativa é de que os resultados ajudem a melhorar o controle ou a eliminação da doença, ampliando o conhecimento sobre a identificação de áreas suscetíveis ou de maior risco de transmissão. “Nossos resultados podem ser extrapolados para regiões com características sanitárias e hidrológicas semelhantes às observadas na Amazônia brasileira”, afirmou Fernanda.

SEDIMENTOS

A presença de sedimentos suspensos nos rios, que geralmente são areia, partículas de argila e lodo, modifica as características da água como suas propriedades físico-químicas e, principalmente, a cor das águas. Estas podem prejudicar ou favorecer os locais de reprodução dos vetores da malária e, consequentemente, ter impacto na transmissão da doença. Na Amazônia, as cores dos rios são classificadas como águas brancas, pretas ou claras. Os rios de águas brancas transportam grande quantidade de sedimentos em suspensão e possuem pH próximo do neutro. Dentre eles, destacam-se os rios Madeira, Purus, Juruá e Solimões/Amazonas. Já os rios de águas pretas, recebem esse nome devido à sua cor característica, que resulta das substâncias neles dissolvidas. Esses rios possuem pH ácido, carregam muita matéria orgânica e apresentam baixa concentração de sedimentos suspensos em suas águas. O maior deles é o Rio Negro. Finalmente, os rios de águas claras (por exemplo, o rio Tapajós) apresentam coloração esverdeada ou são transparentes. Esses rios carregam pequena quantidade de sedimentos dissolvidos, possuem certo nível de matéria orgânica dissolvida e pH próximo do neutro. Nesse contexto, o estudo propôs realizar uma abordagem baseada em hipóteses, que correlacionam as cores das águas dos rios da Amazônia e a incidência da malária, a fim de avaliar se as características do tipo de cor da água influenciam na distribuição da doença.