Mestrado fora da sede para indígenas do Alto Solimões inova nas metodologias de formação e qualifica projetos dos alunos
Os alunos indígenas do Curso de Mestrado em Saúde Coletiva, oferecido pela Fiocruz Amazônia, por meio do Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Saúde na Amazônia (PPGVIDA), com turma fora de sede, exclusiva para indígenas do Alto Solimões, na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Peru e Colômbia), já estão concluindo a fase de qualificação de seus projetos. Dois anos após o início das atividades do curso, pioneiro no Brasil, as qualificações começaram e vem apresentando resultados positivos e aprovação absoluta dos alunos, marcando o encerramento de uma etapa importante do processo de formação da primeira turma de sanitaristas indígenas do Brasil, que começam agora a se preparar para a defesa de suas dissertações.
Coordenadora do Mestrado e uma das mentoras do projeto, a pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz Amazônia, Maria Luiza Garnelo, explica que, para conseguir esse resultado, foi necessário inovar nas metodologias de formação. “Uma política de ações afirmativas de cotas não significa apenas oferecer vagas. Faz-se necessário uma adequação metodológica que permita a adaptação do aluno ao seu modus operandi. Este ano, completam dois anos que começamos esse processo de formação de indígenas como sanitaristas em nível de mestrado, cumprimos os créditos obrigatórios, os optativos, e não perdemos ainda nenhum aluno, sempre é possível perder, raramente num curso temos 100% de ingressos e saídas, com a mesma velocidade, com a mesma produtividade”, explica.

A turma é composta por 15 alunos indígenas, das etnias tikuna, kambeba, kaixana, marubo e kokama, provenientes dos municípios de Tabatinga, Benjamim Constant, Atalaia do Norte, Amaturá e Santo Antônio do Içá. A iniciativa de criar o primeiro curso de mestrado exclusivo para indígenas é do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia) e conta com o apoio da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) – que concedeu as 15 bolsas, mais recursos para auxílio em pesquisa para os indígenas aprovados – e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de projeto aprovado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
O pioneirismo do curso reside no fato de que, pela primeira vez no Brasil, são oferecidas turmas exclusivas para formação de sanitaristas indígenas, de forma presencial e na modalidade sala estendida, por um programa de pós-graduação da Fiocruz. “No momento, estamos cumprindo uma agenda programada porque alguns projetos não estão ainda com a qualidade necessária, mas nossa ousadia, digamos assim, é termos optado por realizar pesquisas de campo, mesmo com os tempos curtos de um mestrado e a necessidade de autorizações dos órgãos como Funai, DSEI, CEP, CONEP, entre outros, sabendo que isso vai implicar em alongar um pouco o tempo”, observa Garnelo.

A pesquisadora explica que a “ousadia” de escolher o caminho mais demorado se deu em virtude da expectativa dos próprios alunos. “Todos esperam que os projetos sejam de utilidade e de interesse de suas comunidades. Se quiséssemos optar pelo caminho de outros programas de pós-graduação que adotam dissertações de cunho de revisão bibliográfica, ou abordagens mais teóricas, que não demandassem deslocamento para o campo e autorizações CEP, CONEP e Funai, estaríamos já concluindo o curso, Mas essa alternativa deixaria todos os alunos muito frustrados, porque a motivação principal é fazer algo que traga um benefício, um retorno mais direto e mais perceptível para suas comunidades e os distritos sanitários”, esclarece.
Os projetos da turma de Sanitaristas Indígenas do Mestrado do PPGVIDA versam, em sua maioria, sobre questões indígenas focadas nas necessidades de saúde dos povos que vivem no Alto Solimões e Vale do Javari. “Resolvemos fazer assim porque achamos que seria mais produtivo para eles em ternos de aprendizado e para a relação deles com as comunidades. As pessoas poderem ver um produto que fale com elas, que diga algo sobre elas, ao invés de fazer algo mais genérico, mais abstrato”, reforça. Segundo a coordenadora, a ampliação do prazo de concessão de bolsas é um impasse. “As bolsas normalmente são concedidas para 24 meses e certamente a maioria dos alunos não estará em condições de concluir e de defender suas dissertações neste prazo”, admite.
Para Luiza Garnelo, a questão do tempo de duração das formações de turmas indígenas é uma premissa que precisa ser levada em consideração. “Precisamos refletir e pensar em como lidar com isso em futuras turmas. O tempo tem que ser mais alongado em função dessas características”, pondera.
QUESTÕES LINGUÍSTICAS
Outro aspecto importante a ser considerado no processo formativo dos mestrandos foi o suporte em relação a questões linguísticas no tocante a falantes de língua que não seja o português e ao manejo da língua portuguesa escrita. “Como a maioria dos nossos alunos não tem o português como primeira língua, o que já sabíamos, foi preciso operacionalizar o suporte para que esta barreira fosse vencida. Para isso, buscamos o apoio de especialistas em Linguística”, explica Luiza, referindo-se aos professores doutores Mateus Coimbra de Oliveira, Gabriel Arcanjo Santos de Albuquerque e Sanderson Oliveira, que contribuíram para o processo de escrita dos estudantes no Alto Solimões. Cada membro da equipe de língua portuguesa acompanhou 5 estudantes entre setembro de 2024 e julho de 2025.
“Os colegas linguistas fizeram uma adaptação de um teste para falantes do português como segunda língua, feito para estrangeiros não para indígenas, e a adaptação ficou muito interessante. Aplicaram um teste de proficiência em português escrito e português falado e interpretação de texto escrito, a produção de texto escrito e a interpretação do texto de terceiros”, conta Luiza.
O linguista Sanderson Oliveira explica que o processo de avaliação e assessoria linguística aos discentes do curso da turma se deu por meio de duas ações gerais: avaliação da fluência dos discentes em língua portuguesa e assessoramento da produção oral e escrita dos discentes. “No primeiro caso, fizemos uma adaptação do modelo CELPE-BRAS e aplicamos a todos os 15 discentes indistintamente, haja vista que a informação inicial era de que todos eram falantes de língua indígena e ingressaram no programa sob essa condição e com a exigência de que deveriam fazer a proficiência em língua portuguesa como proficiência em L2 (geralmente os cursos fazem em uma língua estrangeira, principalmente em inglês). A adaptação do modelo CELPE-BRAS considerou o contexto de uma turma indígena, modificando alguns detalhes como os conteúdos das avaliações escrita e oral. Modificaram-se ainda os modelos das avaliações e foram selecionados temas relativos à saúde indígena para as tarefas”, explica o professor.
A avaliação inicial, nesse caso, teve caráter diagnóstico, mas serviu também como prova de proficiência em língua portuguesa, necessária para que os discentes pudessem obter o título. “Alguns resultados obtidos foram importantes tanto para direcionar as ações futuras do trabalho em desenvolvimento quanto para dar subsídios para a continuidade da política afirmativa para indígenas no PPGVIDA”, salienta o docente Gabriel Albuquerque, doutor em Literatura e Língua Portuguesa. Entre os resultados, ele destaca a confirmação de discrepância entre a proficiência oral e escrita dos discentes; e a verificação de sete falantes de português como L1. “Além disso, fatores como pertencimento étnico parecem ser relevantes para a fluência dos discentes em língua portuguesa. É o que mostram nossos resultados”, afirma.
O trabalho de acompanhamento da produção de textos orais e escritos, pelos linguistas, se deu por meio de deslocamentos a Tabatinga, onde o curso ocorre. “Nessas etapas, realizávamos exercícios de textualização e de retextualização assim como de correção individual e coletiva, sempre envolvendo os discentes e tornando-os partícipes dessas atividades. Além disso, no campo da produção oral, eram realizadas simulações de seminários e de defesas”, relata Gabriel.
Nessa segunda etapa, os resultados principais foram as produções dos textos dos discentes para suas qualificações e a preparação para banca, sendo que oito discentes conseguiram fazer a defesa até junho de 2025. “Alguns discentes, que apresentavam mais dificuldades, tiveram um tempo maior para realizar a defesa e, também, de acompanhamento. O grupo de discentes que não logrou êxito na primeira proficiência escrita refez o trabalho e as avaliações ainda em julho”. Este material já foi analisado, tenso se observado melhora expressiva no desempenho dos estudantes no domínio da linguagem escrita.
Apesar de ainda estar em fase de avaliação dos resultados, o entendimento atual é que a assessoria prestada teve resultados positivos. “De um lado, criou-se uma metodologia para a proficiência de alunos indígenas do PPGVIDA, aplicável a outros programas de pós-graduação, algo que não havia até então. Junto a esse processo, foram também apresentados subsídios para ações futuras. De outro lado, os discentes relatam terem melhorado a produção escrita e oral em gêneros acadêmicos e esperam que isso se reflita nos resultados do Mestrado”, avalia. O trabalho dos linguistas prossegue apoiando os orientadores do mestrado na leitura e interpretação e redação de textos.
PROTAGONISMO DO PPGVIDA
Para o professor Gabriel Albuquerque, o trabalho permitiu construir, junto com as professoras Luiza Garnelo e Rosana Parente, um conjunto de procedimentos que qualificam estudantes indígenas no processo de pesquisa em saúde coletiva e possibilitam situar o PPGVIDA como protagonista no uso dos estudos da linguagem como instrumento não só de formação, mas de qualificação de excelência para estudantes indígenas.
“Não menos importante foi um conjunto de práticas e metodologias que buscavam fazer com que os estudantes se sentissem incluídos e não incapazes de dominar a norma de prestígio da linguagem acadêmica. Em outras palavras: respeitando os diferentes usos do português, por meio da textualização e retextualização os estudantes acabavam por dominar a norma culta e compreender que essa norma é um código passível de domínio”, enfatiza.
Embora não sejam uniformes, os resultados são muito animadores, segundo o professor. “O que se mostra em dois diferentes momentos: a apresentação de pôsteres durante evento realizado pelo ILMD/Fiocruz Amazõnia (V Encontro de Pós-Graduação) e as defesas dos projetos. De um ponto de vista mais estrito, somente as defesas das dissertações e os resultados daí provenientes levariam a compreender o alcance das Oficinas de Produção Textual e Redação Científica como também o papel que cumprem no que diz respeito aos estudantes indígenas”, frisa.
Por fim, Gabriel explica que a experiência pode servir de marco para o aperfeiçoamento das políticas de ações afirmativas no Brasil em se tratando de oportunidades de formação acadêmica e qualificação profissional para povos tradicionais. “Não tenho dúvidas quanto a isso. Toda a equipe envolvida tem clareza dos limites que uma primeira experiência dessa natureza contém. De certo, poderíamos fazer mais e melhor se dominássemos previamente alguns elementos tais como um diagnóstico da proficiência dos estudantes em língua portuguesa e a compreensão que podem ter quanto à escrita acadêmica ou não. São elementos que pedem aperfeiçoamento, é claro, mas o que prevalece é a compreensão de que, aqui no Norte do Brasil – e mesmo ao longo de todo o Brasil – não houve iniciativa semelhante”.
O docente ressalta que o conjunto de documentos resultantes desse trabalho (diagnósticos, relatórios, textos produzidos pelos estudantes, metodologias aplicadas pelos professores) e a maneira como a logística de todo o processo foi conduzida gerou resultados novos no campo das ações afirmativas e da qualificação profissional para povos tradicionais. “Mais do que esperança, temos a certeza de que esse processo formativo gera lideranças capazes de lidar com as políticas de saúde para as populações tradicionais como também se abre o campo da pesquisa para elas. Criamos, portanto, mais do que uma ação inclusiva; criamos também uma tecnologia de inserção social”, finaliza Gabriel Albuquerque.
ILMD/Fiocruz Amazônia, por Júlio Pedrosa
Fotos: Júlio Pedrosa